sábado, 13 de fevereiro de 2016

Minha Luta e a Sua Luta


Caderno de Cultura
Por María Abbelán Guertas-García
(correspondente internacional do Vera Cruz Times em Córdoba,
especial para o Folha da Madrugada)

Vamos ser diretos: quem, em sã consciência, se interessa por um esterco literário como “Minha Luta”?

A pergunta não é retórica: é também estatística e, digamos, de alguma forma academicamente relevante.

Li esses dias um fundamento jurídico de botequim bordado para sustentar a ilusória ilegalidade da medida concedida pelo juiz carioca, que proibiu a edição desse literary turd. Era mais ou menos assim: “É proibida a discriminação de pessoas com base em raça, religião ou grupo étnico. Mas seria crime expressar e defender ideias preconceituosas? Defender ideias que pareçam discriminatórias por alguns não equivale a praticar diretamente a discriminação”.

Com base nesse argumento, não haveria problema algum em editar livros sobre a KKK e sobre o ódio a negros. Daria também, veja só, para se editar livros sobre técnicas de estupro e, um ou outro, incitando a pedofilia.

Desculpem, leitores, ter que levar o argumento a esse ponto enojante, mas a retórica sem vergonha da “liberdade de expressão” me forçou a isso.

Defender ideias que são discriminatórias (sem essa de dizer que o “Minha Luta” apenas parece discriminatório) equivale, obviamente, a discriminar. Paremos com a palhaçada.

O mais tosco, entretanto, é ver isso tudo fundamentado na “liberdade de expressão”. 

Liberdade de quem? do autor? Expressão de quem? do autor? Convenhamos – essa história de liberdade de expressão para publicar um livro de Hitler foi um dos argumentos mais patifes que já pude ler ou ouvir na vida. O artigo constitucional fala claramente de “liberdades individuais”. Que indivíduo ou a expressão de quem pretendem defender publicando essa excrescência? Não posso imaginar outro protegido (pela leitura mesma do artigo) que não seja o próprio autor dessa obra fecal.

Bem, se querem defender os leitores, deixem que eles mesmos o façam e recorram, declarando candidamente “eu tenho o direito de ler Hitler”.

No mais, não podemos nos esquecer dele, o matreiro editor que coloca no anticristo comum a responsabilidade pela parte criminosa da edição, ficando com ele o lucro e a cara deslavada de estar a serviço da “informação da humanidade”, lembrando-me ainda que o artigo constitucional fala de “liberdades coletivas”. É o fim da picada ter que debater essa conduta, mas, para ela, já demos a solução – leitor de Hitler, peticione, recorra, defenda seus direitos, mostre seu trabalho acadêmico e seu interesse meramente intelectual em gastar alguns reais com meio quilo de bosta em palavras.

Como crítica de Paulo Coelho, posso dizer: li e não gostei. E. L. James? Li e gostei mais ou menos (achei até engraçado, confesso), embora prefira Sade e Safo e me excite mais com Machado e Mário de Andrade. Há coisa mais importante para ler, convenhamos. E até entre as menos importantes, há coisas mais decentes.

Vejam: no fundo do poço dessa discussão, não importa tanto quem defenda “liberdade de expressão” nesses termos ou que alegue ilegalidade na proibição – esses demonstram, pelo argumento ébrio, que sobrou leitura de Caras e faltou leitura no Diário Bola Preta. Espanta, entretanto, a postura do editor, que, infelizmente, sei bem que é.

Uma história para ilustrar: anos atrás um amigo meu enviou uma tese de doutorado sobre a relação entre antissemitismo e governos. O editor disse que tinha uma fila enorme de outras publicações, além do que, o título em si (ainda que aprovado magna cum laude), “não era vendável”.

Um outro editor disse que até publicaria a tese, mas desde que o autor pagasse pelos custos da publicação (chegou a cobrar algo em torno de cinco mil reais na época) e deixasse com ele, editor, os lucros da venda.

Outra alternativa seria ele “pagar pelo serviço” de edição, ficar com a tiragem de 1000 exemplares e tentar vender, ele mesmo, o autor, de porta em porta nas Universidades.

Dispensável dizer que esse segundo editor recebeu o dedo do meio como resposta.

Pois bem – ainda assim, esses editores encontram espaço para editar, “sem custos com o autor”, uma diarreia sociológica como o “Minha Luta”.

O que fazemos com calhordas que agem assim? Bem, me parece que o conteúdo da liminar carioca é o mínimo, mas já passou da hora de termos um retrato fiel desse grande esgoto a céu aberto chamado “mercado editorial brasileiro”.

Bem, mas ao par da proibição (que me parece a segunda melhor ideia), tenho outra sugestão – essa sim, a melhor ideia de todas: a edição e venda fica liberdada, desde que o editor, sob pena de multa equivalente a R$10.000.000,00 (dez milhões de reais) por livro vendido irregularmente, tome as seguintes providências em seus canais de distribuição exclusivos

1. anote os seguintes dados de todos os compradores – nome, idade, profissão, nível escolar, nacionalidade, cidade em que mora, local em que comprou o livro e data da compra,

2. faça com esses dados um belo “cadastro positivo”, com a lista completa dos leitores interessados (sabemos, obviamente, que todos lerão por puro interesse acadêmico) acompanhados desses dados estatísticos;

3. divulgue tudinho em seu site, atualizado semanalmente, sob o título “LEITORES DE HITLER”;

4. acrescente o seguinte disclaimer – “o uso dessas informações fica autorizado, nos termos do art. 5º, IV e IX da Constituição Federal, podendo ser feito para fins exclusivamente estatísticos e acadêmicos”.

Tudo poderá ser custeado com o valor da venda dos livros e ainda sobrará um montão para o editor.

Asseguro que o acesso a essas informações será de relevância acadêmica muito maior do que a venda, em si, do “Minha Luta”.

Nesses termos, pode até ficar com o lucro, editor...