Caderno de Cultura
Por María Abbelán
Guertas-García
(correspondente internacional do Vera Cruz Times em Córdoba,
especial para o Folha da Madrugada)
Vamos ser diretos: quem, em sã consciência, se interessa por
um esterco literário como “Minha Luta”?
A pergunta não é retórica: é também estatística e, digamos,
de alguma forma academicamente relevante.
Li esses dias um fundamento jurídico de botequim bordado
para sustentar a ilusória ilegalidade da medida concedida pelo juiz carioca,
que proibiu a edição desse literary turd.
Era mais ou menos assim: “É proibida a discriminação
de pessoas com base em raça, religião ou grupo étnico. Mas seria crime
expressar e defender ideias preconceituosas? Defender ideias que pareçam
discriminatórias por alguns não equivale a praticar diretamente a discriminação”.
Com base nesse argumento, não haveria problema algum em
editar livros sobre a KKK e sobre o ódio a negros. Daria também, veja só, para
se editar livros sobre técnicas de estupro e, um ou outro, incitando a
pedofilia.
Desculpem, leitores, ter que levar o argumento a esse ponto
enojante, mas a retórica sem vergonha da “liberdade de expressão” me forçou a
isso.
Defender ideias que são
discriminatórias (sem essa de dizer que o “Minha Luta” apenas parece discriminatório) equivale,
obviamente, a discriminar. Paremos com a palhaçada.
O mais tosco, entretanto, é ver isso tudo fundamentado na
“liberdade de expressão”.
Liberdade de quem? do autor? Expressão de quem? do autor?
Convenhamos – essa história de liberdade de expressão para publicar um livro de
Hitler foi um dos argumentos mais patifes que já pude ler ou ouvir na vida. O
artigo constitucional fala claramente de “liberdades individuais”. Que
indivíduo ou a expressão de quem pretendem defender publicando essa
excrescência? Não posso imaginar outro protegido (pela leitura mesma do artigo)
que não seja o próprio autor dessa obra fecal.
Bem, se querem defender os leitores, deixem que eles mesmos
o façam e recorram, declarando candidamente “eu tenho o direito de ler Hitler”.
No mais, não podemos nos esquecer dele, o matreiro editor
que coloca no anticristo comum a responsabilidade pela parte criminosa da
edição, ficando com ele o lucro e a cara deslavada de estar a serviço da
“informação da humanidade”, lembrando-me ainda que o artigo constitucional fala
de “liberdades coletivas”. É o fim da picada ter que debater essa conduta, mas,
para ela, já demos a solução – leitor de Hitler, peticione, recorra, defenda
seus direitos, mostre seu trabalho acadêmico e seu interesse meramente
intelectual em gastar alguns reais com meio quilo de bosta em palavras.
Como crítica de Paulo Coelho, posso dizer: li e não gostei.
E. L. James? Li e gostei mais ou menos (achei até engraçado, confesso), embora prefira Sade e Safo e me excite mais
com Machado e Mário de Andrade. Há coisa mais importante para ler, convenhamos.
E até entre as menos importantes, há coisas mais decentes.
Vejam: no fundo do poço dessa discussão, não importa tanto
quem defenda “liberdade de expressão” nesses termos ou que alegue ilegalidade
na proibição – esses demonstram, pelo argumento ébrio, que sobrou leitura de Caras e faltou leitura no Diário Bola Preta. Espanta, entretanto,
a postura do editor, que, infelizmente, sei bem que é.
Uma história para ilustrar: anos atrás um amigo meu enviou uma
tese de doutorado sobre a relação entre antissemitismo e governos. O editor
disse que tinha uma fila enorme de outras publicações, além do que, o título em
si (ainda que aprovado magna cum laude),
“não era vendável”.
Um outro editor disse que até publicaria a tese, mas desde
que o autor pagasse pelos custos da publicação (chegou a cobrar algo em torno
de cinco mil reais na época) e deixasse com ele, editor, os lucros da venda.
Outra alternativa seria ele “pagar pelo serviço” de edição,
ficar com a tiragem de 1000 exemplares e tentar vender, ele mesmo, o autor, de
porta em porta nas Universidades.
Dispensável dizer que esse segundo editor recebeu o dedo do
meio como resposta.
Pois bem – ainda assim, esses editores encontram espaço para
editar, “sem custos com o autor”, uma diarreia sociológica como o “Minha Luta”.
O que fazemos com calhordas que agem assim? Bem, me parece
que o conteúdo da liminar carioca é o mínimo, mas já passou da hora de termos
um retrato fiel desse grande esgoto a céu aberto chamado “mercado editorial
brasileiro”.
Bem, mas ao par da proibição (que me parece a segunda melhor
ideia), tenho outra sugestão – essa sim, a melhor ideia de todas: a edição e venda
fica liberdada, desde que o editor, sob pena de multa equivalente a R$10.000.000,00
(dez milhões de reais) por livro vendido irregularmente, tome as seguintes
providências em seus canais de distribuição exclusivos
1. anote os seguintes dados de todos os compradores – nome,
idade, profissão, nível escolar, nacionalidade, cidade em que mora, local em
que comprou o livro e data da compra,
2. faça com esses dados um belo “cadastro positivo”, com a
lista completa dos leitores interessados (sabemos, obviamente, que todos lerão
por puro interesse acadêmico) acompanhados desses dados estatísticos;
3. divulgue tudinho em seu site, atualizado semanalmente, sob
o título “LEITORES DE HITLER”;
4. acrescente o seguinte disclaimer – “o uso dessas
informações fica autorizado, nos termos do art. 5º, IV e IX da Constituição
Federal, podendo ser feito para fins exclusivamente estatísticos e acadêmicos”.
Tudo poderá ser custeado com o valor da venda dos livros e
ainda sobrará um montão para o editor.
Asseguro que o acesso a essas informações será de relevância
acadêmica muito maior do que a venda, em si, do “Minha Luta”.
Nesses termos, pode até ficar com o lucro, editor...