por Dom Fernandes III
Na frente do Hotel-de-Ville, em Paris, há uma praça de mesmo nome. Tempos atrás se chamava Place de Grève (acento agudo em francês pronuncia-se igual ao "é" em português, lembra a francófona Dilma).
Gravier, material que dá origem ao arrabalde na beira do Sena que toma por grève o empréstimo do termo central que designa o lugar (essa figura de linguagem chama-se metonímia, segundo expertos e inteligentes), significa meramente cascalho.
Lá atrás no tempo, dizia-se que na frente do tal palácio havia uma prainha cheia de cascalho e daí o nome que foi dado ao espaço; algo, em português, parecido com Pracinha do Cascalho ou Largo Cascalhal.
Como gostam de fazer naquelas bandas, apagaram o nome original para arrastar o passado que incomodava junto com a semântica antiga e, com nome novo, o lugar se renovou - hoje chama-se Esplanada da Liberdade.
De fato, não há povo mais hipócrita com a sua história que a França. Não que eu não goste da França - pelo contrário. Mas convencer-se que uma história politicamente incorreta da França daria uma enciclopédia de 80 volumes é meramente constatar que o discurso histórico por lá é construído de acordo com as conveniências do que hoje andam chamando por ai de pós-verdade.
A história francesa é a avó de criação da pós-verdade.
Dito isso, voltemos à etimologia: lá se encontravam os desempregados e descamisados, que na história oficial é dito que lá se reuniam em frente ao poderoso palácio governamental para protestar, mas que na história real politicamente incorreta há uns escritos dizendo que iam lá meramente para praticar a famosa arte da escroto-cocção (o populacho chama isso de "coçar o saco").
Pois bem. Ingleses inventaram o strike, ato que os blue collars praticavam quando estavam de saco cheio: deitavam a porrada em tudo que estava pela frente, nem tento com o fim de subverter a ordem econômica; faziam isso porque estavam humanamente com a paciência no limite. Quem usava as strikes para subverter a ordem econômica eram os economistas observadores, que não trabalhavam nem produziam; ficavam só olhando, analisando e dando opinião.
Sempre houve alguma diferença entre a escroto-cocção dos franceses na praça do cascalho e o hooliganismo britânico nas fábricas.
Eis que o Brasil inventa algo sensacional: funde as duas coisas e mantendo o cerne ergofóbico da greve, vez ou outra lhe insere um tempero hooliganista para dar ares de protesto.
Fato é que, além desse tempero semântico o Brasil ainda caiu na esparrela de transformar essa prática em direito. Pior: botou esse direito na constituição: "é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender". Não vamos entrar (ainda) no mérito de quem são esses trabalhadores para tentar imaginar quem pode na verdade decidir sobre a oportunidade de exercer essa prática - vamos partir do pressuposto que quem para é trabalhador (e não necessariamente quem faz o strike, coisas diferentes na prática = parar não é sair por ai praticando hooliganismo ou vice-versa).
Se o hooligan é trabalhador e parou (deixou de trabalhar) pra cair na porrada, é algo a ser investigado pelas mais profundas tecnologias, mas vamos, em novo esforço de conveniência, assumir que são a mesma pessoa.
Ai temos então na constituição um direito potestativo, daqueles em que quem exerce não precisa dar satisfação a ninguém podendo exercê-lo erga omnes, contra todos e contra qualquer um (não apenas contra o patrão), pois o ato de parar pode se ligar ao ato de agredir. Ao "trabalhador" cabe decidir se e quando fazê-lo, como e porque; qual seja, ele para e dá a entender que parou pelo argumento que quiser. Não há diálogo. Decide e danem-se os demais.
Isso está escrito na Constituição; com todas as letras. Leiam com o mais restritivo dos olhares: não tem como não enxergar que a tal "carta cidadã" dá ao "trabalhador" um direito em que ele decide o conteúdo, data, hora, modo, razão, extensão e tudo o mais que lhe for conveniente construir no day after em que, para não nos distanciarmos de um vocabulário usado recentemente, faz o Diabo.
A questão é que quando o strike ou o lockout inglês viraram hábito de insatisfeitos e a escroto-cocção francesa em Grève já era uma prática usual, os tempos eram outros. Não havia ainda a transferência para a China do parque industrial do mundo. Cada canto tinha lá o seu espaço industrial. Hoje há apenas resíduos de tudo o que já foi transferido para a China. Nos EUA e na Europa ficaram os serviços, na América Latina o celeiro, no Oriente Médio o combustível e na África a miséria.
Greve na Europa ou na América Latina é como tocar valsa em rave. Não faz o menor sentido, seja econômico, seja industrial, seja jurídico, seja político. É puro ato de mimimi de quem não aceita conversar. Faz-se por estratégia covarde e normalmente atinge quem não concorda e quer trabalhar. Por que a parcela de descontentes não protesta no domingo? Por pura ergofobia e, bottom line, porque de domingo o hooliganismo que se faz durante a semana pode sair pela culatra.
O uso que se faz do absolutismo do art. 9⁰ da CF/88 em plena Era da Informação e dos Serviços tem o intuito claro e determinado de subverter a regra da democracia e tentar ganhar na marra o que o argumento não faz vencer. O art. 9⁰ é claramente um safe harbor de truculência para quem não precisa ter razão. E o próprio artigo constitucional dá nome, cpf e endereço a esse sujeito que não precisa ter razão para poder chutar o baldo quando, como e pelo tempo que quiser (já que o próprio sindicalismo que se quer mudar se arrosta uma representação para apenas e tão somente usar esse artigo em favor do representante, sem nem perguntar ao representado se isso faz sentido).
Preciso continuar ou será que ficou claro que o art. 9⁰, um dos únicos com respaldo constitucional no mundo, precisa sumir o quanto antes de um rol de direitos que se quer se equiparar a outras práticas como viver, ter liberdade, pensar, ser igual perante a lei?