Caderno de Política
por Cícero Esdras Neemias
Safatle, declarado por este respeitável hebdo o vencedor da discussão da semana passada sobre democracia direta travada contra Hélio Schwartsman em certa Folha Higiênica deu sequência às suas ideias.
No mérito, como dissemos, Safatle tem razão. A falência do conceito de representatividade, a potência da manifestação direta aberta pela tecnologia, que vem sendo usada para futilidades e reprimida para o que interessa (discussão política) e a necessidade explicável de um estado que serve a quem se serve dele está na base da necessidade de debate de implementação da democracia direta.
Entretanto, ao explicar como essa democracia direta deve ser implementada a partir da situação atual em que nos encontramos, Safatle erra. Acerta no mérito, portanto, mas erra na forma. Muitos desinstruídos tentaram confundir essa ideia com o contragolpe em marcha na Turquia, mas não só erram na comparação como também na forma e o erro de Safatle é uma derivada de equívoco dessa comparação.
Para implementar a democracia direta já, Safatle defende que o Congresso seja dissolvido.
Estamos absolutamente convencidos de que o Senado é uma das coisas mais inúteis da paróquia. A Câmara até que poderia ter alguma utilidade, mas faz de seu locus um mercadão dos mais sujos e fétidos da história da humanidade. Não é para menos: treinam internamente nos partidos.
Outra matéria desta semana na mesma Folha Higiênica cobriu as eleições internas no PT: mortos votando, urnas com 40 votos que desaparecem no meio do pleito e reaparecem com 240 votos, militantes votando mais de uma vez - um festival de fraudes e calamidades que começa internamente no partido.
As prévias que escolheram Dória no PSBD também não foram nenhum show de ética: no PSDB não se chegou a esse cúmulo de colocar morto para votar ou urna que some e reaparece, mas o candidato da fila, Matarazzo, foi atropelado nas prévias por mecanismos que claramente circularam a ética e o limite do debate de ideias.
A corrupção e o mau uso da representatividade (mau uso para não dizer uso criminoso) começa nos partidos. Os partidos inventaram a corrupção moderna. Vamos parar com essa história de demonizar o empresário: o petrolão deixou claro que a ideia, a estruturação e a arquitetura do propinoduto do lulopetismo nasceu dentro do próprio PT. Todos sabem que o PT aperfeiçoou um esquema que o PSDB herdou do PMBD, que por sua vez herdou dos militares da ARENA, que teria reformado um esquema da UDN, que organizou uma farra reinventada pelo PTB de Vargas, que teria dado um golpe para acabar com o café-com-leite de SP e MG mas acabou transformando o patriarcalismo semifeudal em fascismo a brasileira, cujas origens estaria na defeituosa independência que teria perpetuado um status implementado no regime colonial e ai, ao fim e ao cabo, achamos o culpado - o português!
Esse percurso de marxismo comprado nas Galerias Lafayette demoniza o português (esse malvadão!) e chama o empresário de lúcifer, mas escamoteia o verdadeiro cerne do problema, o seu perfil estrutural de rapina: os modelos de coletividade fechada criados e autorizados pelo estado. Aquele protoestado português de Dom Manuel deu o Brasil para a sua burocracia palaciana e essa mesma burocracia palaciana vem dando as cartas no Brasil desde então.
Com o passar dos anos e a modernização do Leviatã, tivemos, nada mais, nada menos, do que mecanismos cada vez mais sofisticados de acesso a essa burocracia palaciana. Hoje esse acesso se dá por meio dos partidos políticos, que são invenções do Segundo Reinado de Pedro II para substituir o modelo que imperou entre os séculos XVI e XIX de acesso via nobiliarquia. Houve uma fase de transição entre nobiliarquia e partidarismo, mas já no final do século XIX e na beira do abismo de empurrou o Império para dentro do fosso, o partidarismo substituiu a nobiliarquia oficial e a ela se sobrepôs, em uma espécie de nobiliarquia republicana.
Os partidos hoje são (porque assim foram criados) como verdadeiras universidades da corrupção, da rapina, do roubo, da mentira, da fraude e da espoliação do trabalho alheio sem a necessidade de empenhar trabalho próprio.
Voltando a Safatle, sugere o mesmo a dissolução imediata do Poder Legislativo, com fechamento de todas as Casas Legislativas.
Mas, muito cá entre nós: a quem caberia declarar esse fechamento? Executivo? Judiciário? Exército? Marinha? Aeronáutica? Bombeiros? Exército da Salvação?
Safatle diz uma verdade sem saber como implementá-la: algo típico da esquerda.
Certa vez, no ofício de entrevistador enquanto perquiria uma personalidade da esquerda que defendia a estatização de empresas corruptas e quebradas, uma colega minha de profissão questionou o ás do marxismo: não seria uma injustiça repassar a conta de erros do empresário para o contribuinte pagar? O experto teria respondido: isso é lá com os advogados resolver... E assim, na cabeça deles, se resolve o problema de uma ideia brilhante - passando a demanda de solução para outro.
É o que faz Safatle, é o que faz toda a esquerda, desde Proudhon. Eles sabem que a ideia é boa, mas ao serem demandados para apontar caminhos, como fez Marx, caem no discurso fácil do golpe na força, na dissolução do Congresso, na ditadura do proleteriado, enfim - admitem a ditadura como meio de se chegar a democracia. Isso o faz serem intelectualmente desacreditados, de seriedade superficial.
Sim - a pergunta é: como fazer?
Está claro que dissolver o Congresso e os Poderes Legislativos de fora para dentro é golpe de estado. Esse caminho não é possível. Não dá. Simplesmente não dá. Não se chega na democracia na base da porrada (ainda que seja uma "porrada política").
É necessário vir de dentro para fora. O próprio Congresso deve a público e fazer a sua mea culpa e propor devolver ao eleitor o poder que tomou séculos atrás.
Esse poder foi verdadeiramente usurpado mas o Congresso precisa, de mão própria, devolvê-lo para a população de eleitores.
Talvez democracia direta e democracia representativa, na prática, tenham que coexistir.
Trocar um modelo por outro na base da dissolução é uma idiotice, uma preguiça mental que sempre marcou as esquerdas mundo a fora.
Mas na prática, como acessar o Congresso para que essa vontade seja discutida?
Eis o ponto central da democracia direta - o acesso.
O acesso ao Congresso é monopólio dos partidos, que em casa e internamente funcionam como verdadeiras fábricas de rapina, universidade de calhordas, cursos avançados de cafajestes. Cabral in Bangu que não nos deixe mentir (além de muitos outros, que entraram imaculados na política e foram talhados internamente nos partidos para sofisticar esquemas de genocídio eleitoral).
Das fraudes internas nos partidos a venda de medidas provisórias e leis, nota-se que há um universo próprio de cooptação das instituições para manietá-las a serviço de líderes partidários e de seus asseclas que aguardam a hora da herança: foi assim com Jango depois de Vargas, com Alckmin depois de Covas, com Pitta depois de Maluf (cuja liderança acabou sendo herdada por Kassab após a morte de Pitta) e assim sempre será enquanto tivermos partidos definindo as linhas sucessórias na política profissional.
Um dia os partidos terão que acabar, ser todos extintos e todas as candidaturas terão que ser livres de estrutura partidária. Hoje em dia já há movimentos políticos suprapartidários que orientam politicamente os grupos de interesse as pessoas que a eles se afiliam e que, cada um ao seu modo, acaba (ou não) procurando os partidos que podem leva-los ao poder. Política e partidos hoje estão definitivamente separados.
O primeiro passo é acabar com o monopólio partidário a fim de encurralá-los na insignificância real ou na utópica extinção (que, muito cá entre nós, é uma utopia que eu acredito).
O fim dos partidos é o primeiro passo para termos democracia direta de fato no país.
Esta é uma medida simples e que pode ser implementada por projeto de lei de iniciativa popular: com a flexibilização das candidaturas independentes o caminho para que o Congresso seja ocupado por pessoas que tenham (tanto a esquerda, quanto a direta) o ímpeto e a coragem de assumir papel de protagonismo na construção da democracia e da política no mundo, invariavelmente terá um curso prático cada vez mais amplo de transferência desse poder para o eleitor até que se culmine com a desnecessidade fato do Congresso e dos Legislativos (Assembleias e Câmaras Municipais item).
Começa-se pelas candidaturas e inicia-se um processo e não um golpe, com dissolução imediata do poder pelas mãos sabe-se lá de quem.
Os eleitores ocupam esse espaço que vem sendo deixado pela camarilha congressual.
Tirem-lhe os brinquedinhos (partidos, marqueteiros de campanha, doações de campanha, aliança de partidos com empresários, ordem da vocação hereditária partidária-política, segunda divisão ou divisão de acesso [so called Estados da Federação]): sobrará apenas o poder, em seu estado "puro", digamos assim, pronto para ser exercido diretamente - sem intermediários, qual seja, sem partidos, sem "representantes eleitos pelo povo", sem lobistas (como querem alguns). "O Povo ao Poder", como diria Castro Alves ou, democracia direta como diria este hebdo.
Sem os instrumentos usuais ficará mais difícil (para não dizer, impossível) manipular, comprar leis, roubar dinheiro público impunemente, ganhar sem trabalhar.
Safatle disse o certo sem saber como fazer. Chegou a hora para ele mudar de assunto, ou seguir no assunto lendo este hebdo antes de dizer platitudes marxistas como "dissolução do congresso".