Após 5 (cinco) horas de depoimento, o réu ex-presidente encerrou sua autodefesa perante o juiz da Lavajato.
Nessa ocasião, o réu teve a oportunidade de se defender e apresentar a sua visão sobre um item muito específico que está sendo investigado: (i) se foi corrompido; (i.1) qual seja, se concedeu vantagens a alguém e recebeu algo em troca por isso; (ii) se esse "algo em troca" é um apartamento na praia; (iii) se, caso o tenha recebido, fez esforços para ocultar esse recebimento (por meio de atos atípicos, simulações e dissimulações); e (iiii) se, ao ocultar (ou tentar ocultar) o fez com o intuito não apenas de esconder, mas também de ludibriar (quem quer seja) a respeito da origem do ato, da experiência pessoal que, por razões legais não seria permitida e que, portanto, toda a cadeia de simulações ou dissimulações posteriores teria a capacidade de dar um ar de legalidade a essa experiência pessoal.
Na técnica, o ponto "(i)" chama-se "crime de corrupção passiva", o ponto "(iii)" chama-se "ocultação de bens" e o ponto "(iiii)" chama-se lavagem de dinheiro.
Gente do planeta Terra diz que durante o interrogatório o réu teria entrado em contradição em inúmeros pontos e que por isso teria se autoincriminado; gente do planeta sinistro sai por ai dizendo que não há provas e que o réu demonstrou por "a+b" que o juiz é parcial, o persegue e que nada do que foi produzido, seja no interrogatório, seja nos autos, permite concluir positivamente para responder aos itens "(i)" a "(iiii)" acima.
Muito bem, um disclaimer: votei em Lula e me arrependo amargamente. Não só. Tenho profunda vergonha pessoal de tê-lo feito. Peço desculpas por isso e por ter contribuído em leva-lo ao seu primeiro mandato que culminou com o Mensalão. Desse ponto em diante desisti (em tempo, creio eu) de creditar-lhe qualquer confiança eleitoral.
Dito isso, vamos aos fatos.
Comecemos pelo argumento da falta de provas.
Para tanto, a turma do planeta sinistro se fia que para existir provas, é necessário que haja uma "gravação" em que o próprio réu assume literalmente tais fatos ou um documento com assinatura dele indicando a transferência do título de propriedade do bem para o réu, de forma direta, com uma série de ordens e recibos por parte do corruptor ativo de que a vantagem foi recebida e devidamente quitada, saldada e liquidada. Ou ainda: uma certidão do cartório de imóveis que mostre o que o uso, gozo e a disposição do bem estão ou estiveram formalmente registradas em nome do réu. Essa turma gostaria de ver a prova de um ato no estilo delivery versus payment.
E isso de fato não há.
Mas daí a sair cantarolando que não teríamos prova de corrupção passiva, ocultação de bens e lavagem de dinheiro, há uma necessária dose de fantasia para achar que essa musicação da falta de provas faz algum sentido na prática.
A característica principal da trinca corrupção-ocultação-lavagem é exatamente a sua ocorrência em um universo que não funciona pelo raciocínio e pelas práticas do delivery versus payment.
A técnica usada envolve os mesmos mecanismos usados no mercado financeiro para os derivativos: na lavagem que visa ocultar atos de corrupção, as partes envolvidas fazem uma série de atos com substituição de posições jurídicas, trocas de posições, intermediações sofisticadas. A diferença para os derivativos é que na trinca C-O-L, essas trocas e swaps são realizados não por meios autorizados pela lei civil, mas justamente por meios que a mesma lei proíbe - estou falando essencialmente da cadeia de atos simulados. Nos derivativos essas trocas, substituições, derivações e afins são todas registradas em um agente central - na trinca C-O-L é justamente essa falta de transparência e a intenção de enganar que se diferencia, na forma, sem mudar o que, na essência, em ambos se faz para se evitar o chamado delivery versus payment.
A simulação civil é, portanto, da essência da trinca C-O-L.
Provar uma simulação, portanto, nem sempre se faz por meio de uma confissão, uma degravação de conversa telefônica em que o simulador diz ("ei, amigo, vou praticar uma simulação e fazer algo dizendo que estou fazendo outro, você topa?" ao que o outro responde, "claro amigo, será um prazer!!") ou um documento passado em cartório em que vai poder se ler Instrumento Particular de Lavagem de Dinheiro e Ocultação de Bens. Nem os roteiristas de Os Simpsons seriam capazes de criar algo semelhante.
Há, portanto, um sério problema em relação ao conceito usado para determinar o que é prova.
Prova e probidade, segundo os dicionários de latim que tenho aqui, são palavras cognatas; qual seja, são de mesma origem. A prova é um ato de representação assim como os demais atos que exigem probidade: andam lado a lado. Vêm do latim probo [as, avi, atum, are] que significa reconhecer por experiência. Desse verbo deriva o adjetivo probus, a, um, que qualifica algo que é de boa qualidade.
Probo é o homem comum, é o homem que tem as diligências de uma pessoa normal, que age como uma pessoa comum agiria e com as cautelas que geralmente vemos nos "supermercados da vida". Ímprobo é o homem que age de forma obtusa, incomum, diferente, dissimulada; faz as coisas sem mostrar direito a sua real intenção, age com cautelas transversais, não faz as coisas da vida de maneira direta e sempre procura agir de maneira paralela com as coisas.
Prova é aquilo que reconhece algo pela experiência, e em meio de representação de boa qualidade. A prova, portanto, deve mostrar que algo é plausível de acordo com uma experiência consolidada e em demonstração de qualidade. Em resumo, prova = experiência + qualidade. Probo = normalidade + transparência.
Pois bem - diante desse conceito é absolutamente constrangedor admitir que não há provas no caso do apartamento de praia.
Há uma abundância espantosa de provas, qual seja, de experiências reconhecidas e de inquestionável qualidade instrumental de que o ex-presidente corrompeu-se, ocultou bens e lavou recursos para tentar dar ares de legalidade a essa vergonhosa situação envolvendo esse apartamento de veraneio.
A experiência buscada pela prova, sobretudo quando a investigação e a persecução envolvem a trinca C-O-L, escora-se sempre na experiência do homem médio, do homem probo.
E tudo o que envolve essa operação específica afasta-se da experiência do homem médio, de uma pessoa proba, que procura imóveis com as chamadas "cautelas de praxe". É, por assim dizer, uma experiência única e singular. Não há jurisprudência nem caso semelhante que mostre que essa experiência de aquisição desse imóvel tenha qualquer traço de habitualidade na vida de uma pessoa proba.
O réu não passou recibo nem tampouco registrou em cartório o tal Instrumento Particular de Quitação de Pixuleco e Outras Avenças, mas é inegável que manteve com o presidente e acionista controlador de uma construtora um relacionamento típico de amizade íntima. Esse mesmo indivíduo confessou e teve a sua confissão corroborada por outros testemunhos e documentos de que recebeu vantagens que nenhuma outra pessoa recebeu na ocasião específica em que ele, empreiteiro, foi beneficiado (mais de uma vez, diga-se de passagem). O benefício decorre de um tratamento dado a seus interesses financeiros enquanto credor de uma entidade (Petrobrás) controlada diretamente pela pessoa jurídica (União Federal), cujo réu era o mandatário principal.
O grau de intimidade na relação envolve proximidade entre famílias e favores trocados, bem como outras graças e gentilezas absolutamente incomuns.
O bem existe mas diferentemente da experiência do homem médio, a sua documentação é confusa, inexplicável e atípica, mesmo no caso de empreendimentos oriundos de um projeto inicial que faliu. Coincidentemente envolve as mesmas pessoas que, por amizade íntima, teriam trocado vantagens. De um lado a vantagem está cabalmente provada e é inquestionável - a do empreiteiro. Do lado do réu desta última quarta-feira, insiste-se na dúvida, no in dubio pro reo.
Mas a dúvida começa a se dissipar quando a relação para a obtenção desse imóvel e a sua desistência saem completamente da experiência comum para se tornar uma experiência única, atípica. Reconhece-se por essa experiência atípica que o réu, de fato, praticou a chamada simulação civil, em que a lei diz ocorrer quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem ou transmitem. Qual seja - quando as partes dizem que após a desistência o imóvel foi, por uma operação jurídica, parar no patrimônio da empreiteira, é exatamente isso que o reconhecimento por experiência está mostrando - uma aparência de que essa transferência teria ocorrido. A lei ainda diz que se simula quando a experiência do caso contiver declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira. Mais uma vez o reconhecimento por experiência evidencia inúmeras cláusulas e condições não verdadeiras, sobretudo quando a ponta do empreiteiro é ligada a outras experiências comuns.
A evidência do falso, que leva a simulação, que leva à lavagem para ocultação, que reconhece por experiência o suborno, é absolutamente clara e livre de dúvidas.
Na experiência de um homem comum que deseja adquirir um imóvel (e não apenas e tão somente aquele imóvel específico por razão ainda quase oculta), contrata um corretor e visita não apenas um, mas inúmeros. Quando se depara com um imóvel que não gostou, parte para o próximo e não desiste no primeiro, sob o argumento de que eram 3 estágios empilhados. O homem comum não age assim, não faz isso.
Ainda que, pela importância do comprador, prefira o vendedor sair de sua posição de acionista controlador e presidente da construtora para dar-lhe um tratamento especial (seja por se tratar de um ex-presidente da República, seja por se tratar de um amigo íntimo), raramente o dono da construtora irá frustrar o amigo e irá dar uma solução a sua demanda.
Há um fetiche incomum em relação a esse imóvel que foge completamente da experiência comum.
Qual seja, não houve uma busca por imóvel, houve sim uma tentativa enviesada por este bem específico.
Quem já procurou apartamento para comprar e alugar sabe que não é assim que funciona. Já tive experiências, inclusive, com pequenas construtoras em que o proprietário fez questão de atender o potencial comprador e mesmo nesses casos, a experiência provada no caso de Curitiba é ainda assim muito atípica, incomum, insólita e única.
Infelizmente (e eu torci para que isso não ocorresse) o ex-presidente réu relatou reconhecimentos por experiência que tornam a trinca L-O-C inegável e cabalmente provada.
Os detalhes, se vistos com atenção, mostram pessoas maliciosas por todos os lados, rasurando documentos, formando planilhas paralelas, contabilidades ocultas em exaustão, registrando créditos e favores derivados de posições oficiais com aparência externa diversa da real, amizades íntimas, swap de agrados, substituição de posições jurídicas com pessoas que emprestam seus nomes, dados e documentos para novar simulação anterior com simulação subjetiva posterior e assim por diante. É um emaranhado de atos atípicos que não casam em nada com o conceito de probidade onde vemos, entre os cidadãos comuns, a busca por um bem, o seu achamento após 30 ou 40 visitas a imóveis semelhantes, um combinado de pagamento (a vista ou em parcelas), uma transferência de dinheiro cuja origem é um salário ou uma renda para a conta do vendedor, que registra essa entrada de recurso com receita sua, em troca do bem que é transferido. Isso seria normal, mas não é essa normalidade que se vê.
Não a toa um homem de leis como CARNELUTTI veio a dizer que prova é aquilo que servono a procurargli un'esperienza. Juristas espertos lêem latim e sabem que para provar, como diz a lei, não precisa ter ali exclusivamente o Instrumento Particular de Venda de Vantagem Indevida e Outras Avenças - esse reconhecimento da experiência pode se dar por meio de perícias, pelo próprio interrogatório (sobretudo o de outros réus, quando importa em confissão), testemunhas, o reconhecimento das coisas, as coisas buscadas, os documentos e, por fim, o indício, que a lei faz questão de dizer que "Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias".
No caso da audiência de 4a feira, é absolutamente preocupante ver que há gente defendo falta de provas.
Nesse pormenor, é importante discutir outra falta.
Será que diante de tantos indícios, qual seja, circunstâncias conhecidas e provas que tem relação com os fatos e autorizam, por indução, concluir-se a existência de circunstâncias relacionadas a ocultação de posição jurídicas, simulações e dissimulações que conduzem a lavagem de dinheiro oriundo de atos de corrupção, não haveria uma pessoa sequer que faça essa defesa pública desse réu e que sinta ao menos um pouco de vergonha alheia diante de tanta atipicidade?
As pessoas não conseguem sentir vergonha desses detalhes envolvendo uma amizade com um capitalista confessadamente corrupto por tanto tempo (tanto a amizade quanto a corrupção)? Não sentem vergonha de tanta trapalhada para comprar um apartamento na praia, com tantas rasuras em contratos, idas e vindas, reformas, cozinhas, visitas, mentiras conjugais, relações espúrias precedentes de amizades e negócios, declarações contraditórias, encontros em hangares, conversas desencontradas, práticas que não se reconhecem em uma viva alma no mundo que as adote quando vai comprar ou alugar um imóvel, enfim... não sentem aquela ponta de vergonha alheia que todo pai de família sentiu ao ler os resumos do interrogatório e as platitudes de uma teia de tantas mentiras?
Não?
Nem um pouco?
Então meu diagnóstico não é jurídico; não é falta de provas - é de falta de vergonha na cara mesmo.