Caderno de Política
por Cícero Esdras Neemias
Tempos atrás, in a galaxy far far away, o conceito de indecência tinha um espectro bem definido.
Nos tempos de Paulo Francis, se alguém vinha a público dizer "eu paguei propina para este político" isso seria causa para um escândalo brutal.
Imaginem, leitores, se alguém com muito, muito, muito dinheiro e muito, muito, muito poder por ser dono de uma empresa muito, muito, muito poderosa e muito, muito, muito lucrativa dissesse, "eu não apenas pagava regularmente, como administrava uma conta, em meu nome e para benefício desse político, um salariozinho mensal e o pagamento apenas de sua conta de luz, telefone, telefone móvel, netflix, internet e cartão de crédito (nem precisa ser platinum)".
Nos tempos de Vargas, Adhemar de Barros, Lacerda ou até de Jango ou Jânio Quadros, uma declaração como essa seria um precedente histórico absolutamente devastador e incomum - geraria na hora uma revolução, uma tomada de poder, um corre-corre de fuzis e tanques, enfim, coisas que o Brasil já fez por muito menos.
Hoje em dia não apenas temos essas declarações como também extratos de contas no exterior, movimentação do dinheiro para pagar reformas, jatinhos, passeios, aulas de tênis, joias, sapatos (sim, eles, os sapatos... sim, os 40 sapatos da loja!!!!!... sim, todos os 40 pares!!!). Não apenas contas de netflix ou um cartãozinho corporativo - é muito mais do que isso e em níveis que beiram (não gosto dessa palavra, mas voi là), o ódio em quem trabalha e pensa - "mas que filho da p..., e eu aqui ralando, tendo que fazer um ajuste de IR esse ano que daria para comprar legalmente aquela joia que o prefeito comprou para a esposinha dele como forma de lavar o dinheiro que ele roubou de mim!!!".
Mais: não temos apenas um único empresário a dizer essas, digamos, "transações" - temos um empresário por semana vindo a público para dizê-lo, quase que em uma gincana de valores em que o seguinte precisa bater a cifra do anterior da mesma forma em que os mesmos fazem rallies de apresentação anual de resultados: "hahaha, bati o EBITDA do meu concorrente", "yes!!! nosso ROE superou o de fulano", "wow, nosso networth (PL) subiu e o dele caiu", "fulano lucra x% acima de cicrano"; hoje passamos a ver empresários dizendo, "ele pagou 500MM em propinas??? peenuts - paguei 2 bi"; "ah, ele usava o laranja X? haha, eu já tinha um laranjal inteiro dentro de uma diretoria que dei o nome de Diretoria de Obras Públicas de Benemerência"...
A Lavajato tirou-nos a capacidade de nos horrorizarmos. Deixamos de nos estupidificar diante das confissões. Esse foi um aspecto negativo da Lavajato (um dos poucos) e que precisa a todos instante receber injeções de ânimo alimentadas por doses crescentes de dignidade. Cada pilhagem revelada, parte da nossa dignidade acaba indo junto disso tudo. Parece que ao ler um acordo de colaboração premiada o réu/colaborador não entrega à Justiça apenas as trapaças que fez - entrega também parte da nossa dignidade, tirando parte de nossa força para reagir com indignação.
Mais grave ainda é a turma da defesa. Usam de chicanas antigas, de técnicas cafonas e mendazes de multiplicação de atos, pedidos de vista, extensão e alongamentos desnecessários de procedimento, mas, no mérito, não dizem um "A" sequer. Não apresentam imposto de renda, de onde veio o dinheiro para viajar tanto de jatinho, a origem dos recursos, a qualidade do serviço prestado (que os power points de Wikipédia demonstram o contrário) - nada. Nada que aproxime como essa turma vive de como vive a maioria de nós todos, onde temos que dar satisfação até para os vizinhos quando trocamos de carro.
A cada declaração oficial "negando veementemente" as falas dos "delatores" (que, insistimos, a justiça trata como colaboradores), há a velha e surrada técnica da malhação ad hominem: "canalha", "não vale nada", "mentiroso" ou simplesmente "vai acreditar em palavra de corrupto e delator?". Alguns ainda afirmam a amizade pretérita e tacham os colaboradores com a pecha de "traidores", reafirmando subliminarmente a existência de uma Omertà, para logo dizer que essa seria uma espécie de traição misturada com factoide - argumento de defesa esse que não sobrevive a um extrato bancário sequer.
Pessoas inteligentes, com títulos, pompas, doutorados, teses, láureas, discursos, colunas, cargos, caindo na esparrela de dizer que colaboração "é tortura", ou que "voltamos aos tempos dos militares"; ou os isentões, que criticam as circunstâncias fazendo discursos sobre a história do "devido processo legal" e "amplitude da ampla defesa" ou a "garantização garantida das garantias garantidoras". Mas nada a dizer sobre o mérito, sobre o direito material, sobre a atipicidade da conduta, os indícios (esses sim veementes) de absoluta anormalidade nas ações.
De outro lado uma série de detratores do establishment (com ilustres e honrosas exceções) que se dizem espantados com Neves, perdidos com FHC (que dorme com Lula e acorda com Lulja) e "desiludidos com a política".
Banalizamos a indecência. Acabamos nos acostumando tanto a ela que a sua vulgarização virou argumento de defesa para todos os lados.
Sofrem MPF, Justiça Federal, o "Partido da Justiça" (nome estúpido inventado pelos detratores em qu e a semântica da palavra política, neste caso, se volta contra os próprios detratores), a Imprensa Livre Mundial (Sabino escreveu um texto hoje exatamente sobre isso).
Tudo isso porque perdemos essa capacidade de se indignar com essas coisas hediondas, asquerosas e repugnantes.
Será que o futuro nos verá da mesma forma que o presente lê os abolicionistas do início do Século XIX e fins do Século XVIII? Será que verão os "isentões" da mesma forma que a história passou a julgar senhores moderados como uma espécie de "abolicionista que tinha escravos mas os tratava bem"? Será que vamos ver casos como o do Barão de Mauá, que alforriava e depois contratava o alforriado mediante pagamento de salário e assim fez o seu próprio abolicionismo, em situações como a de empresas que "não corrompem, não se metem e não denunciam quem corrompe"?
Que história vamos contar para os nossos netos? O que dirão eles para os respectivos netos deles a respeito do papel que os seus avós (e, portanto, tetravôs dos ouvintes) tiveram nesse período da história?
Sei que os progressistas não valorizam propriamente temas relacionados a família e exemplos que serão legados para gerações futuras e recebidos pelas gerações passadas - por mim tudo bem, quem não terá filho por opção ideológica será julgado pelos filhos de quem teve (respondendo à pergunta de alguns corruptos a respeito de como a história haverá de julgá-los).
Nesse contexto vai se preparando um caminho de flexibilização, de dieta de pão e água para a Lavajato, de consenso de que isso tudo "já encheu"... E não é assim, não pode ser assim, não deve ser assim que se conserta um problema grave como esse e que tem atrelado a ele não apenas os insuportáveis resultados na macroeconomia, mas também uma altíssima taxa de impunidade em todos os crimes em geral, com o aumento desmesurado de nossas taxas de homicídio que nos transformaram em uma zona de guerra de fato.
Precisamos manter o nosso status de indignação alerta. Não podemos nos dignar a tratar isso tudo com normalidade.
Não há como viver sem dignidade.
O oposto da dignidade é a banalidade.
Que tipo de história vamos querer que nossos netos contem? De que fomos banais ou dignos?