segunda-feira, 12 de junho de 2017

Demagocracia indireta

por Dom Fernandes III

Pondé, filósofo que adoramos e respeitamos, mais uma vez, aprontou das duas em relação ao ideal da democracia direta.

Apequenando-se nas pequeninices dos pequenos das redes sociais, sugere um lado (que ele trata como vocação) da democracia direta que rumaria ao populismo.

Para ele, a exacerbação da democracia leva ao populismo.

Este é um tema caro de nossa linha editorial e, ao ousar discordar, defendemos o contrário, caro Pondé.

Ao sustentar que a "democracia teria uma vocação irresistível ao populismo", ateia fogo assim:
Conhecer o "lado B" da democracia é essencial se quisermos proteger o seu "lado A". Ao contrário do que pensa a nossa vã filosofia do bem (produção inteligentinha), é o reconhecimento das sombras que garante alguma luz mínima sobre as coisas e nas coisas. Como diria o filósofo Darth Vader: só o olhar direto nos olhos do lado escuro da força nos faz compreendê-lo e saber como ele pode se tornar irresistível.
Seu apelo hobbesiano impressiona e ao lançar mão de um "folclore da democracia" (folk theory of democracy), revela o "lado negro" do engajamento político: desinteresse, absenteísmo, egoísmo, "agenda" que geram o generalizado ódio visto nas redes sociais, a ágora moderna por excelência.

 Pondé desce a barra para tornar o argumento válido. Não chega a ser uma petição de princípio, mas o freio que se pisa diante de uma manada de touros descontrolados nas redes sociais sugere fazer todo o sentido para quem observa o ódio na ágora, temperado com absenteísmo, egoísmo, "agenda"...

Quando pego nessa consistency trap armada por Pondé, concordar passa a ser quase que obrigação. E assim ficamos diante de um non-start: para que buscar algo democrático se a democracia é motivada por uma demagocracia? Em suas palavras:
E qual a razão da democracia ter vocação irresistível ao populismo? Fácil de responder. A busca de conhecimento não é algo evidente em nós. A vida é muito dura para nos darmos a esse luxo. O que buscamos, na maior parte das vezes, como diz o filósofo Woody Allen em seu maravilhoso "Crimes e Pecados" são racionalizações que justifiquem nossos desejos.
O que quer que façamos por ela, democracia, jamais a impedirá de, no terceiro gole de uísque, se transformar em demagocracia. Carregar essa drag queen da política moderna é um fardo de todos nós, preguiçosos por excelência, movidos todos pelo desejo benthamiano que nos torna utilitários e defensores de "agendas" e não de ideias.

O argumento é de fato quase irresistível (afinal de contas, estamos lidando com Pondé!).

Desanca inclusive a ideia plebiscitária que não apenas sustenta nossa posição a respeito da opção técnica e constante pelas opções eletivas diretas, mas que, para ele, está na base de todo populismo:
A vocação primeira da democracia é o populismo. Só com muito esforço resistimos a ele porque a política é confusa, ambivalente, sombria, retórica, suja, enfim, humana, demasiadamente humana. Quem pede plebiscito o tempo todo é um populista disfarçado de ovelha.  
Contudo, Pondé apenas consegue fazer o argumento planar no ar por conta de um fator que nunca excluímos quando falamos nessa democracia transmudada em demagocracia: O Estado. Num universo sem intermediação, sem Legislativo, sem "representações", enfim, sem Estado, ficamos com a impressão de que o argumento não se sustentaria assim tão fácil.

Populismo é típico não das democracias, mas de regimes em que a presença do Estado (curador, patrocinador, aparador, paternal, salvador, acolhedor) fica subliminarmente exposta.

Essa demagocracia, como distorção da democracia em um Estado Paizão, concretamente populista, tem em razão direta com o Estado uma dívida de gratidão e lógica existencial: Stálin, Mao, Hitler, Vargas, Chávez, Kirschner, Lula, Correa, Perón, Fidel, Trump, FDR, todos populistas de primeira grandeza, alguns sob a forma de ditadura, outros sob a forma de demagocracia (mas nenhum sob a forma de democracia direta pra valer - nem mesmo FDR, ouso dizer), fez de seu ofício Salvador (por meio do culto às respectivas personalidades) o conduíte entre o povo e o Estado realizador e acolhedor (mas, ao mesmo tempo, um ser multitetas em que o povo só enxerga do pescoção pra cima).

O problema não está na essência da democracia (tanto daquela democracia aristotélica que Pondé zomba logo na primeira linha, quanto aquela democracia tocquevilliniana que ele zomba na linha seguinte ao Darth Vader). E, com todo respeito, o convite de Darth Vader nada tem a ver com o lado negativo de algumas demagocracias (pseudodemocracias transmudadas pelo populismo em veículos de adoração pessoal e controle geral), pois nelas não há lado positivo pois, de fato, não são democracias.

Populismo é o oposto de democracia, sobretudo se o termo é acolhido dentro do conceito agorista e anarcocapitalista que demanda participação direta e grau zero de intervenção estatal. Se Aristóteles coloca no oposto da democracia a tirania, podemos dizer que a demagocracia (qual seja, o populismo) é a forma mais perfeita e acabada de tirania, pois a personalidade cultuada faz do Estado a sua bicicleta para pedalar nessa estrada da Tirania, que nada sabe, vê ou conhece de democrático.

É da essência do Estado demagocrático que o cidadão não participe, mas não por vontade do cidadão, e sim por vontade ou mecanismo oculto da personalidade cultuada (seja na forma simples do fuzil de Mao, seja na forma complexa do Pixuleko de Lula e Dilma).

A democracia verdadeira não tem intermediários; não tem sequer Estado. O cidadão participa direto e se não quiser, não o faz por direito (e não precisa "justificar o voto" ou "pagar multa" para legitimar a personalidade cultuada). Se abusa da imbecilidade e do ódio, paga diretamente pelo destempero o que, pelo dilema do prisioneiro, sempre obriga o destemperado (que espera o freio do Estado a lhe dizer, "para, chega") a arrazoar para que não acabe em um conflito em que seu destempero levará dois lados a perda.

Na democracia não gostamos de jogar dentro do perde-perde, algo que na demagocracia é regra pois há um Estado para "redistribuir" perdas.

Populismo, Mestre, tem a ver com Estadão, inchado, interventor - nada tem a ver com democracia: é a sua caricatura, uma espécie de Gremlin que dela se desprende.

Sugeriria que o título, então, fosse: "Estado tem uma vocação irresistível ao populismo"...

Deixemos a democracia não de lado, mas acima de tudo isso.

Obrigado e boa semana!