quarta-feira, 21 de junho de 2017

Editorial

Por Dom Fernandes III

Nossos leitores sabem que a nossa linha editorial é cautelosa e jamais falamos de temas no calor das conversas.

Hoje, entretanto, abriremos uma exceção.

Impossível não posicionar o hebdo acerca do que deve ocorrer nesta tarde no Supremo Tribunal Federal, com chances concretas de revisão do acordo de colaboração premiada assinada pelo Ministério Público Federal com um escroque nacional.

Já dissemos alhures, não só aqui mas também em colaboração com outros veículos menores (Estadão, Globo e outros principiantes) de que a hipótese de o trabalho do MPF estar sendo feito de forma isolada e sem uma atuação conjunta com autoridades nos EUA nos parece improvável. Item quanto a magnanimidade dos EUA para receber um escroque nacional brasileiro sem que ele tenha por lá celebrado algum tipo de acordo ou plea bargaining, uma vez que todos os M&As que ele celebrou nos EUA foram feitos com dinheiro sujo.

Dito isso, vamos às circunstâncias.

O Ministro E. Fachin homologou um acordo de colaboração premiada. O fez por conta de foro por prerrogativa de função de pessoas relatadas nas falas manhosas do ex-açougeiro-Mor. É um mecanismo tão bizarro quanto imbecil e não especificamente da nossa legislação (que é imbecil por si só), mas da forma como a entendem (aqui, imbecil ao quadrado em PG). Vem daquele maroto artigo 102 da constituição, que diz que ao STF cabe processar e julgar originariamente, “nas infrações penais comuns, o Presidente da República (...) [e] os membros do Congresso Nacional” (inciso I alínea “b”).

Daí já acham que a colaboração prevista no art. 4º da Lei 12.850/13, quando citar algum energúmeno que tenha assento nos lugares descritos pelo 102, I, b da Constituição faz com que a homologação do ato, em si, vá para as mãos originariamente do STF. Estende-se a prerrogativa de foro por função ao delator, mesmo que ele venha arrolar deputado do baixo clero dizendo idiotices de comprovação lateral.

Esse erro foi cometido pelo STF, pelo Min. Barbosa e repetido pelo finado e saudoso Min. T.A.Zavascki e acompanhado pelo plenário, expandido algo que havia sido feito antes no Mensalão sem muita reflexão (lá tinha-se réu em concurso de agentes, nas colaborações nem sempre isso ocorre, razão pela qual o Min. T. A. Zavascki chegou a voltar atrás e desdobrar alguns processos descendo-os para o Paraná).

Se um dedo-duro relata o crime de doutor com foro por prerrogativa de função, o dedo-duro ganha esse foro "privilegiado" de brinde. Ele em si, dedo-duro, deveria ser julgado lá no Paraná ou em Brasília, mas porque é amigo do Rei, vai parar no Tribunal das Relações. Era assim no tempo de rei e a interpretação não mudou, ainda que se mude a lei. Coisas de nosso Brazyuw.

Isso faz com que a tarefa constitucional do STF inventada a partir de 1988, seja poluída com uma atividade jurisdicional inquisitiva e acusatória típica de funções e tarefas que cabem a um juiz de primeira instância. Em suma, o STF pós-1988 nunca deixou de ser aquele Tribunal da Relação que atendia aos reclamos do Rei.

Voltando: o STF não atua nesses casos como o STF que vincula tribunais inferiores - impossível nesse tipo de situação que o STF faça um controle clássico de constitucionalidade ou baixe normas vinculantes (sumuladas ou não). Atua como uma corte qualquer e as constitucionalidades ou inconstitucionalidades que declarar serão incidentais e ad hoc, exatamente como ocorre no controle difuso de cortes inferiores ou de um juizado de causas de chinelo.

Sei que vão dizer que estamos loucos e que “se o STF falou, tá falado”, mas no reme-reme do dia-a-dia da Justiça, a forma como o STF diz e o contexto específico em que lhe é dado falar faz enorme diferença. Isso é resultado de um falar muito do STF. Como o STF fala muito, não dá saber tudo o que ele fala então os juízes de 1a instância se orientam apenas com as falas que interessam e, neste caso, asseguro, não vai interessar para julgar o dia-a-dia, seja ele do Acre, da Bahia, de São Paulo ou... do Paraná!

Dizer algo no Mensalão foi histórico, mas como temos visto, não fez jurisprudência relevante - só prestou mesmo para dar essa esticada marota no "foro privilegiado" dos alcaguetes.

O mesmo poderá se dizer hoje e amanhã dos processos dessa Lavajato.

Min. E. Fachin, nesse caso, age em substituição dos juízes Moro, Bretas ou V. S. Oliveira e em jurisdição ad hoc: qual seja, nesses casos o STF age como tribunal de exceção permitido por lei (justamente porque a “exceção” que justifica a atuação é dada pela constituição e a priori).

Salta aos olhos porém o caminhão de adubo que vem sendo despejado na imprensa oficial, oficiosa e nas redes sociais.

Há em relação ao jogo desta tarde a dicotomia: (1) a anulação da homologação vai acabar com a Lavajato (por isso “soy contra”) versus (2) a anulação da homologação vai botar o colaborador na cadeia (por isso “soy a favor”).

Há ainda quem diga que se o plenário rever a decisão do relator que homologou o acordo, estaria havendo um “gópi da toga” na Lavajato.

Tudo tão verdadeiro quanto uma nota de 3 rúpias.

Começando por este último esterco ("gópi da toga"), lembramos apenas que a homologação é uma decisão monocrática e que qualquer decisão monocrática em cortes superiores podem ser revistas, sim, pelo plenário.

Tecnicamente, então, o que seria uma homologação? Não seria ela uma chancela imutável de atos praticados pelas partes e que o juiz apenas consagra vivo, como se fosse uma “certidão de nascimento”?

Eis então o cerne da natureza desse ato: homologar, do grego, é deixar no mesmo lugar (homo, de mesmo ou igual e logos, de lugar). O juiz, ao homologar, diz: ok, fique como está, por mim tudo bem. É um ato que os especialistas em juridiquês dizem ter efeito meramente declaratório. O juiz declara algo que já é.

Para declarar algo e homologar, dar esse “ok”, o juiz precisa olhar a lei e bater um certo checklist para ver se os requisitos formais daquele ato foram cumpridos. Ele se pergunta – foram cumpridos? Se a resposta for “sim”, adivinhe...: ele homologa. Se a resposta for “não”... ele não homologa e manda cumprir as exigências que faltam.

Homologação é algo comum naquilo que os mesmos especialistas chamam de jurisdição voluntária, qual seja, o juiz só está lá interferindo num ato entre partes porque a lei manda ele estar lá: na verdade, nem precisaria dele. Em acordos para encerrar lides, quando o autor de uma cobrança “dá um desconto” para o réu e aceita receber a vista com 20% de desconto em relação ao que está sendo cobrado, é exatamente isso que o juiz faz: “estando bom para ambas as partes e cumpridos os requisitos legais, homologo o acordo”.

Mesmo em coisas mais complicadas uma homo+logos é revista: tem juiz que anula casamento, certidão de nascimento, homologa divórcio. Mas veja - anular uma certidão de nascimento não põe no lugar um atestado de óbito de quem nasceu e declarou coisa falsa na certidão. Conseguem entender o que dizemos pensando no escroque da carne?

A coisa complica quando essa técnica migra da justiça civel para a penal.

Acordo na justiça criminal é coisa nova no Brasil. Começou há alguns anos (em 1995 se não me engano) com pequenas causas e chegou nas grandes em 2013. Não sabemos como tratar isso sob o ponto de vista processual penal.

Mas uma coisa é fato: no âmbito material, o que sai da boca do homem não volta mais...

Veja-se que não há na lei qualquer obstáculo para que uma instância superior reveja uma decisão baixada por juízo inferior, ainda que essa decisão seja de mera homologação.

Especificamente em relação à homologação do art. 4º, §§7º e seguintes da Lei 12.850/13, temos ainda o agravante que acompanha essa lei bem como a lei do acordo de leniência (este, exclusivo para as empresas, segundo a Lei 12.846/13): a parte processual é nula e, no caso desta última, a pouca matéria processual é de qualidade imunda.

Sem parâmetros processuais consistentes de como funciona uma homologação de colaboração premiada e como os efeitos dessa homologação são gerados e eventualmente nulificados, ficamos todos, literalmente, na mão de 11 pessoas difíceis de se confiar.

Irão se valer de analogias e invencionices, sendo os dois Decanos campeões em inventar besteiras e tapa-buracos que mais parecem gambiarras jurídicas do que efetivamente interpretações sérias.

É o que ocorrerá hoje. Mas a grande questão é, quais os efeitos de uma ou outra decisão?

Se já partimos do pressuposto que uma homologação pode ser revista, o plenário poderá mantê-la ou revogá-la.

Se a mantiver, nada muda.

E se mudar, data maxima venia, nada muda também.

Por quê?

Simples – em primeiro lugar desconhecemos o inteiro teor do que ainda há de ser dito (o colaborador nem sequer começou a gravar seus depoimentos no âmbito judicial), em segundo, ainda que soubéssemos, as declarações públicas já são suficientes para que investigações sigam, em terceiro, a não homologação ou o seu cancelamento não invalida o ato, mas o submete a novas exigências complementares. Se invalidar, volta tudo à estaca zero (invalidar não é rever o mérito homologativo): o colaborador precisará atender ao que estiver contido na sentença que reviu o "mérito homologativo" (que não se confunde com o "mérito da homologação") e contar novamente com nova benevolência do MPF para reciclar afagos.

Principal argumento – a própria homologação franqueada pelo Min. E. Fachin tinha como pressuposto a revisão plenária: na largada o Ministro homolgou, sujeitando essa homolgação a validação e confirmação posterior pelo plenário.

É só ler um pouquinho os atos processuais que o leitor notará que isso tinha data marcada para acontecer, por iniciativa do próprio Min. E. Fachin. Não há complô do plenário contra o relator – isso é fake news, pós-verdade, name it: isso não acontece na realidade de uma corte.

Bem, se não terá efeito algum sobre o conteúdo (justamente porque isso é uma revisão de forma do ato), as penas poderão ser canceladas? Qual seja, o plenário pode entrar no mérito da homologação? Tecnicamente não (ainda que a lei de forma bizarra permita ao juiz adequar a proposta ao caso concreto, mas essa adequação não pode entrar no mérito da acusação potencial). O plenário pode submeter a exigências eternas e nunca homologar (algo comum no Brazyuw), mas jamais pode dizer qual a pena que há de ser aplicada. Isso também não fragiliza em rigorosamente nada o mecanismo, pois está na própria lei que o juiz pode não homologar. Pode acontecer então que o MP ou a PF negociem termos que não são homologados e isso é um risco do colaborador, que pode adiantar informações que ainda que não venham a ser usadas posteriormente no processo contra ele, podem sim migrar para outros processos como prova emprestada. Repetimos: a parte processual é mal ajambrada nas Leis 12.850/13 e não há nada na lei que regule o que deve ser feito com o material colhido em colaboração não homologada. Nada impede, portanto, que os atos produzidos em colaboração malsucedida não vinguem como prova emprestada para outros processos.

Deu pra entender portanto a razão pela qual essa micareta verspertina no STF não tem o menor significado para a Lavajato?

1) porque a Lavajato se circunscreve a atos praticados no âmbito de sociedades de economia mista (especificamente a Petrobras) e representam um esquema de lavagem de dinheiro completamente diferente daquele descrito pelo colaborador da JBS;

2) porque diferente o esquema, ainda não sabemos completamente do que se trata, quem está envolvido e, principalmente, em quais jurisdições está ocorrendo plea bargaining;

3) a Lavajato segue um rumo diferente e tem sua persecução penal específica – talvez essa seja a razão pela qual delatores como Otávio Azevedo e Marcelo Odebrecth não chiaram com os termos do acordo do ex-açougueiro-Mor;

4) outros potenciais delatores poderão complementar e ligar duas pontas (hoje soltas) entre cartel das empreiteiras e as “campeãs nacionais” e neste pormenor, JBS se aproxima de esquemas investigados no âmbito do Grupo X, de Instituições Financeiras (que ainda desconhecemos), da Sete Brasil, do BNDES, CEF, BB e outras frentes que não se confundem com aquelas que tem Petrobras, Correios e Eletrobras como vagão de carga da propina. Há ainda uma terceira frente envolvendo fundos de pensão e, tudo isso ligado, tem-se um esquema do qual a Lavajato é mero elo de uma corrente muito maior.

Não será na tarde de hoje que a Lavajato vai acabar nem que as investigações vão naufragar ou que a sangria vai ser estancada: essa hemorragia já botou o cadáver no cemitério da política. Hoje a tarde irá se discutir o caso específico da língua mole do ex-açougueiro e quem será julgado não será nem o Min. E. Fachin, nem o juiz Moro, nem Lula, nem o MPF, nem a operação Lavajato: está claríssimo que será julgado o colaborador e o seu papel no desenrolar das investigações.

Bem, então, no caso de anulação total da homologação, o tal colaborador corre o risco de ser recolhido ao cárcere?

Tecnicamente, digamos que essa possibilidade também é próxima de zero: não há requisitos para decreto de prisão cautelar – o suposto acusado está colaborando (e muito, diga-se de passagem), não tem representado ameaça para o curso do processo, não está achacando testemunhas nem fraudando investigações (até onde se sabe) e, por isso, as chances de prisão imeditada seriam remotissíssimas.

É possível que tenha benefícios cancelados e que venha a ser preso em virtude de condenação? Isso já nos parece outros 500 e com possibilidades maiores de ocorrer: o tal colaborador, por força de uma interpretação ao art. 4º §8º da Lei 12.850/13 poderá adequar os termos do acordo ao “caso concreto”, mas, cá entre nós – o que sabemos do “caso concreto”? O que sabemos de eventuais desdobramentos em outras jurisdições? O que pode ele estar negociando no âmbito de um plea bargaining centrado no FCPA? Não sabemos; eu não sei, você leitor, leitora, não sabe.

Não se perde tempo com o que não se sabe.

Em relação ao que se sabe e, como quisemos demonstrar, essa tarde não muda em absolutamente nada a tarde de amanhã e assim por diante.