Nossos
leitores sabem que a nossa linha editorial é cautelosa e jamais falamos de
temas no calor das conversas.
Hoje,
entretanto, abriremos uma exceção.
Impossível
não posicionar o hebdo acerca do que deve ocorrer nesta tarde no Supremo Tribunal
Federal, com chances concretas de revisão do acordo de colaboração premiada
assinada pelo Ministério Público Federal com um escroque nacional.
Já dissemos
alhures, não só aqui mas também em colaboração com outros veículos menores
(Estadão, Globo e outros principiantes) de que a hipótese de o trabalho do MPF
estar sendo feito de forma isolada e sem uma atuação conjunta com autoridades
nos EUA nos parece improvável. Item quanto a magnanimidade dos EUA para receber
um escroque nacional brasileiro sem que ele tenha por lá celebrado algum tipo
de acordo ou plea bargaining, uma vez
que todos os M&As que ele celebrou nos EUA foram feitos com dinheiro sujo.
Dito isso,
vamos às circunstâncias.
O Ministro
E. Fachin homologou um acordo de colaboração premiada. O fez por conta de foro
por prerrogativa de função de pessoas relatadas nas falas manhosas do
ex-açougeiro-Mor. É um mecanismo tão bizarro quanto imbecil e não especificamente da nossa
legislação (que é imbecil por si só), mas da forma como a entendem (aqui, imbecil ao quadrado em PG). Vem daquele maroto artigo 102 da
constituição, que diz que ao STF cabe processar e julgar originariamente, “nas
infrações penais comuns, o Presidente da República (...) [e] os membros do
Congresso Nacional” (inciso I alínea “b”).
Daí já acham que a colaboração prevista no art. 4º da Lei 12.850/13, quando citar algum energúmeno que tenha assento nos lugares descritos pelo 102, I, b da Constituição faz com que a homologação do ato, em si, vá para as mãos originariamente do STF. Estende-se a prerrogativa de foro por função ao delator, mesmo que ele venha arrolar deputado do baixo clero dizendo idiotices de comprovação lateral.
Esse erro
foi cometido pelo STF, pelo Min. Barbosa e repetido pelo finado e saudoso Min. T.A.Zavascki e acompanhado
pelo plenário, expandido algo que havia sido feito antes no Mensalão sem muita reflexão (lá tinha-se réu em concurso de agentes, nas colaborações nem sempre isso ocorre, razão pela qual o Min. T. A. Zavascki chegou a voltar atrás e desdobrar alguns processos descendo-os para o Paraná).
Se um dedo-duro relata o crime de doutor com foro por prerrogativa de função, o dedo-duro ganha esse foro "privilegiado" de brinde. Ele em si, dedo-duro, deveria ser julgado lá no Paraná ou em Brasília, mas porque é amigo do Rei, vai parar no Tribunal das Relações. Era assim no tempo de rei e a interpretação não mudou, ainda que se mude a lei. Coisas de nosso Brazyuw.
Isso faz
com que a tarefa constitucional do STF inventada a partir de 1988, seja poluída com uma atividade
jurisdicional inquisitiva e acusatória típica de funções e tarefas que cabem a
um juiz de primeira instância. Em suma, o STF pós-1988 nunca deixou de ser aquele Tribunal da Relação que atendia aos reclamos do Rei.
Voltando: o STF não
atua nesses casos como o STF que vincula tribunais inferiores - impossível nesse
tipo de situação que o STF faça um controle clássico de constitucionalidade ou
baixe normas vinculantes (sumuladas ou não). Atua como uma corte qualquer e as
constitucionalidades ou inconstitucionalidades que declarar serão incidentais e
ad hoc, exatamente como ocorre no
controle difuso de cortes inferiores ou de um juizado de causas de chinelo.
Sei que vão
dizer que estamos loucos e que “se o STF falou, tá falado”, mas no reme-reme do
dia-a-dia da Justiça, a forma como o STF diz e o contexto específico em que lhe
é dado falar faz enorme diferença. Isso é resultado de um falar muito do STF. Como o STF fala muito, não dá saber tudo o que ele fala então os juízes de 1a instância se orientam apenas com as falas que interessam e, neste caso, asseguro, não vai interessar para julgar o dia-a-dia, seja ele do Acre, da Bahia, de São Paulo ou... do Paraná!
Dizer algo no Mensalão foi histórico, mas
como temos visto, não fez jurisprudência relevante - só prestou mesmo para dar essa esticada marota no "foro privilegiado" dos alcaguetes.
O mesmo poderá se dizer hoje e amanhã dos processos dessa Lavajato.
Min. E. Fachin, nesse caso, age em substituição dos juízes Moro, Bretas ou V. S. Oliveira e em jurisdição ad hoc: qual seja, nesses casos o STF age como tribunal de exceção permitido por lei (justamente porque a “exceção” que justifica a atuação é dada pela constituição e a priori).
Salta aos olhos porém o caminhão de adubo que vem sendo despejado na imprensa oficial, oficiosa e nas redes sociais.
Há em
relação ao jogo desta tarde a dicotomia: (1) a anulação da homologação vai
acabar com a Lavajato (por isso “soy contra”) versus (2) a anulação da homologação vai botar o colaborador na
cadeia (por isso “soy a favor”).
Há ainda
quem diga que se o plenário rever a decisão do relator que homologou o acordo,
estaria havendo um “gópi da toga” na Lavajato.
Tudo tão verdadeiro quanto uma nota de 3 rúpias.
Começando
por este último esterco ("gópi da toga"), lembramos apenas que a homologação é uma decisão monocrática e que qualquer decisão
monocrática em cortes superiores podem ser revistas, sim, pelo plenário.
Tecnicamente,
então, o que seria uma homologação? Não seria ela uma chancela imutável de atos
praticados pelas partes e que o juiz apenas consagra vivo, como se fosse uma “certidão
de nascimento”?
Eis então o
cerne da natureza desse ato: homologar, do grego, é deixar no mesmo lugar (homo, de mesmo ou igual e logos, de lugar). O juiz, ao homologar,
diz: ok, fique como está, por mim tudo bem. É um ato que os especialistas em
juridiquês dizem ter efeito meramente declaratório.
O juiz declara algo que já é.
Para
declarar algo e homologar, dar esse “ok”,
o juiz precisa olhar a lei e bater um certo checklist
para ver se os requisitos formais
daquele ato foram cumpridos. Ele se pergunta – foram cumpridos? Se a resposta
for “sim”, adivinhe...: ele homologa. Se a resposta for “não”... ele não
homologa e manda cumprir as exigências que faltam.
Homologação
é algo comum naquilo que os mesmos especialistas chamam de jurisdição voluntária, qual seja, o juiz só está lá interferindo
num ato entre partes porque a lei manda
ele estar lá: na verdade, nem precisaria dele. Em acordos para encerrar lides,
quando o autor de uma cobrança “dá um desconto” para o réu e aceita receber a
vista com 20% de desconto em relação ao que está sendo cobrado, é exatamente
isso que o juiz faz: “estando bom para ambas as partes e cumpridos os
requisitos legais, homologo o acordo”.
Mesmo em coisas mais complicadas uma homo+logos é revista: tem juiz que anula casamento, certidão de nascimento, homologa divórcio. Mas veja - anular uma certidão de nascimento não põe no lugar um atestado de óbito de quem nasceu e declarou coisa falsa na certidão. Conseguem entender o que dizemos pensando no escroque da carne?
A coisa
complica quando essa técnica migra da justiça civel para a penal.
Acordo na
justiça criminal é coisa nova no Brasil. Começou há alguns anos (em 1995 se não
me engano) com pequenas causas e chegou nas grandes em 2013. Não sabemos como
tratar isso sob o ponto de vista processual penal.
Mas uma coisa
é fato: no âmbito material, o que sai da boca do homem não volta mais...
Veja-se que
não há na lei qualquer obstáculo para que uma instância superior reveja uma
decisão baixada por juízo inferior, ainda que essa decisão seja de mera homologação.
Especificamente
em relação à homologação do art. 4º, §§7º e seguintes da Lei 12.850/13, temos ainda o
agravante que acompanha essa lei bem como a lei do acordo de leniência (este,
exclusivo para as empresas, segundo a Lei 12.846/13): a parte processual é nula
e, no caso desta última, a pouca matéria processual é de qualidade imunda.
Sem
parâmetros processuais consistentes de como funciona uma homologação de
colaboração premiada e como os efeitos dessa homologação são gerados e eventualmente
nulificados, ficamos todos, literalmente, na mão de 11 pessoas difíceis de se
confiar.
Irão se
valer de analogias e invencionices, sendo os dois Decanos campeões em inventar
besteiras e tapa-buracos que mais parecem gambiarras
jurídicas do que efetivamente interpretações sérias.
É o que
ocorrerá hoje. Mas a grande questão é, quais os efeitos de uma ou outra
decisão?
Se já
partimos do pressuposto que uma homologação pode ser revista, o plenário poderá
mantê-la ou revogá-la.
Se a
mantiver, nada muda.
E se mudar,
data maxima venia, nada muda também.
Por quê?
Simples –
em primeiro lugar desconhecemos o inteiro teor do que ainda há de ser dito (o
colaborador nem sequer começou a gravar seus depoimentos no âmbito judicial),
em segundo, ainda que soubéssemos, as declarações públicas já são suficientes
para que investigações sigam, em terceiro, a não homologação ou o seu
cancelamento não invalida o ato, mas
o submete a novas exigências complementares. Se invalidar, volta tudo à estaca zero (invalidar não é rever o mérito homologativo): o colaborador precisará atender ao que estiver contido na sentença que reviu o "mérito homologativo" (que não se confunde com o "mérito da homologação") e contar novamente com nova benevolência do MPF para reciclar afagos.
Principal
argumento – a própria homologação franqueada pelo Min. E. Fachin tinha como
pressuposto a revisão plenária: na largada o Ministro homolgou, sujeitando essa
homolgação a validação e confirmação posterior pelo plenário.
É só ler um
pouquinho os atos processuais que o leitor notará que isso tinha data marcada
para acontecer, por iniciativa do próprio Min. E. Fachin. Não há complô do
plenário contra o relator – isso é fake
news, pós-verdade, name it: isso
não acontece na realidade de uma corte.
Bem, se não
terá efeito algum sobre o conteúdo (justamente porque isso é uma revisão de
forma do ato), as penas poderão ser canceladas? Qual seja, o plenário pode
entrar no mérito da homologação?
Tecnicamente não (ainda que a lei de forma bizarra permita ao juiz adequar a
proposta ao caso concreto, mas essa adequação não pode entrar no mérito da
acusação potencial). O plenário pode submeter a exigências eternas e nunca
homologar (algo comum no Brazyuw), mas jamais pode dizer qual a pena que há de ser aplicada. Isso
também não fragiliza em rigorosamente
nada o mecanismo, pois está na própria lei que o juiz pode não homologar. Pode acontecer então que
o MP ou a PF negociem termos que não são homologados e isso é um risco do
colaborador, que pode adiantar informações que ainda que não venham a ser usadas
posteriormente no processo contra ele, podem sim migrar para outros processos
como prova emprestada. Repetimos: a parte processual é mal ajambrada nas Leis
12.850/13 e não há nada na lei que regule o que deve ser feito com o material
colhido em colaboração não homologada. Nada impede, portanto, que os atos
produzidos em colaboração malsucedida não vinguem como prova emprestada para
outros processos.
Deu pra
entender portanto a razão pela qual essa micareta verspertina no STF não tem o
menor significado para a Lavajato?
1) porque a
Lavajato se circunscreve a atos praticados no âmbito de sociedades de economia
mista (especificamente a Petrobras) e representam um esquema de lavagem de dinheiro
completamente diferente daquele descrito pelo colaborador da JBS;
2) porque
diferente o esquema, ainda não sabemos completamente do que se trata, quem está
envolvido e, principalmente, em quais jurisdições está ocorrendo plea bargaining;
3) a
Lavajato segue um rumo diferente e tem sua persecução penal específica – talvez
essa seja a razão pela qual delatores como Otávio Azevedo e Marcelo Odebrecth
não chiaram com os termos do acordo do ex-açougueiro-Mor;
4) outros
potenciais delatores poderão complementar
e ligar duas pontas (hoje soltas) entre cartel das empreiteiras e as “campeãs
nacionais” e neste pormenor, JBS se aproxima de esquemas investigados no âmbito
do Grupo X, de Instituições Financeiras (que ainda desconhecemos), da Sete Brasil, do BNDES, CEF, BB e
outras frentes que não se confundem com aquelas que tem Petrobras, Correios e
Eletrobras como vagão de carga da propina. Há ainda uma terceira frente
envolvendo fundos de pensão e, tudo isso ligado, tem-se um esquema do qual a
Lavajato é mero elo de uma corrente muito maior.
Não será na
tarde de hoje que a Lavajato vai acabar nem que as investigações vão naufragar
ou que a sangria vai ser estancada: essa hemorragia já botou o cadáver no
cemitério da política. Hoje a tarde irá se discutir o caso específico da língua mole do
ex-açougueiro e quem será julgado não será nem o Min. E. Fachin, nem o juiz
Moro, nem Lula, nem o MPF, nem a operação Lavajato: está claríssimo que será
julgado o colaborador e o seu papel no desenrolar das investigações.
Bem, então,
no caso de anulação total da homologação, o tal colaborador corre o risco de
ser recolhido ao cárcere?
Tecnicamente,
digamos que essa possibilidade também é próxima de zero: não há requisitos para
decreto de prisão cautelar – o suposto acusado está colaborando (e muito,
diga-se de passagem), não tem representado ameaça para o curso do processo, não
está achacando testemunhas nem fraudando investigações (até onde se sabe) e,
por isso, as chances de prisão imeditada seriam remotissíssimas.
É possível
que tenha benefícios cancelados e que venha a ser preso em virtude de
condenação? Isso já nos parece outros 500 e com possibilidades maiores de
ocorrer: o tal colaborador, por força de uma interpretação ao art. 4º §8º da Lei 12.850/13
poderá adequar os termos do acordo ao “caso concreto”, mas, cá entre nós – o que
sabemos do “caso concreto”? O que sabemos de eventuais desdobramentos em outras
jurisdições? O que pode ele estar negociando no âmbito de um plea bargaining centrado no FCPA? Não
sabemos; eu não sei, você leitor, leitora, não sabe.
Não se
perde tempo com o que não se sabe.
Em relação
ao que se sabe e, como quisemos demonstrar, essa tarde não muda em
absolutamente nada a tarde de amanhã e assim por diante.