por Magnus Blackman
Acompanhamos ontem a entrevista do genial Samuel Pessoa no Roda Viva.
Em boa parte do programa a vontade era de aplaudir em pé.
Num determinado ponto, entretanto, houve uma manifestação que, com todo o respeito e manutenção da admiração, discordamos.
SP, ao tratar do embate capitalismo vs. socialismo do Século XX e costurar alguns erros do neossocialismo do Século XXI (sobretudo o neossocialismo kirschnerista e chavista, enfim, populista), chega a cair na esparrela de Piketty de dizer que o neoliberalismo (em certa confusão com "capitalismo") teria sido culpado por um aprofundamento das diferenças e das desigualdades econômicas.
No paralelo, SP admite que ao mesmo tempo esse "capitalismo"/"neoliberalismo", de mãos dadas com a evolução tecnológica, tirou a Ásia da sombra e a colocou na proa da geração de riquezas.
Fica perdido então o argumento, por ele assumido como premissa para conciliar com o "lado negativo" do capitalismo/neoliberalismo, de que realmente esse sistema anti-neossocialista de fato geraria desigualdade na sua essência pois poucos estão hoje com o poder determinar de antemão as regras do jogo (e muita vez os preços de entrada e de saída da mesa desse "carteado").
Isso é falso e esse erro SP não pode propagar, pois sua voz é fundamental, importante, lúcida e inspiradora.
O capitalismo foi o sistema dominante no Século XX e foi guiado por ideologias políticas socialistas (planificadas, com base no planejamento) versus ideologias políticas mais liberais. Mas fato é que no Século XX nunca houve modo de produção 100% comunista ou não-capitalista. A diferença está na maior ou menor presença do Estado na economia, o que torna o capitalismo de estado (planejado, planificado, com controle de preços e produção, controle de demanda, de oferta, tudo) um ato de intervenção total. Do outro lado, o modo de produção igualmente capitalista tinha por característica, até a 1a metade do século XX (portanto, até o fim da II Guerra), um grau baixo de intervenção que foi sendo alterado pela forma como FDR mudou o capitalismo nos EUA. Entretanto, característica importante do modelo de FDR foi a criação da SEC para manter os capitais (e, portanto, os mercados de capitais) sob controle público não estatal, enquanto o Estado exercia mera surveillance da atividade capitalista. Nas planificadas o controle passou totalmente do Estado para o Politburo, para o Partido, ou pior, para o grupo que dominava o Partido. Foi assim com Stálin, foi assim com Mao, os dois maiores exemplos de economia planificada e planejada (que Dilma tentou copiar e deu no que deu).
Com o fim da Guerra os EUA passam a organizar a economia sobretudo do Japão e adotando conceitos de planejamento, passam a intervir, igualmente e de forma pesada, exceto nos mercados financeiros e de capitais, que ficam sob vigilância mas não sob controle direto do Estado. A máquina montada por trás do Plano Marshall foi gigantesca. O Estado americano cresceu a níveis nunca dantes vistos para poder intervir de maneira plena na Alemanha e no Japão e reconstruí-los por um modelo de intervenção nunca dantes visto ou tentado. Deu certo por lá, mas o gigante não emagreceu e continuou enorme.
O resultado disso foi um crescimento também dos Estados ditos liberais. Não houve Estado, diante de um movimento de Guerra Fria e corrida armamentista, que ousasse ficar mínimo, enxuto e essencialmente liberal. O liberalismo desapareceu nesse período e deu lugar a um capitalismo de Estado cuja diferença mínima foi a baixa intervenção nos mercados de capitais - todo o resto passou para baixo do Big Brother.
O Século XX destrói o liberalismo smithiano, que tem alguma sobrevida em UTI (respirando com aparelhos) nos hospitais Reagan e Thatcher.
Mas no momento em que Reagan assume o Estado, não há diminuição de fato da máquina, mas sim uma menor surveillance - Reagan diminuiu a vigilância, mas a máquina continua essencialmente a mesma, do mesmo tamanho, inchada e não volta mais a ser a mesma máquina do início do Século XX. Esse erro do neoliberalismo custou caro para o mundo anos depois.
O mesmo se vê no Reino Unido e isso se agrava com a Comunidade Europeia, onde cada estado membro cresce absurdamente para fazer parte desse projeto de integração. Os Estados, ao invés de fazerem os movimentos contrários rumo ao desaparecimento, para surgimento de uma Europa Unificada, incham, crescem, se emasculam a ponto de obnubilar a própria atuação, ou mais, a própria ideia de Europa. Mantém seus reis, rainhas, cortes, aumentam ministérios para cuidar de "assuntos europeus", multiplicam os quadros em Ministérios do Trabalho, explodem os planos locais de previdência, criam um aparato de funcionalismo público nunca dantes visto. Para isso, passam a demandar uma arrecadação tributária nunca dantes vista, que fez até Gerard Depardieu sair da França para virar Russo...
Não foi a concentração dos capitais, as grandes fusões e aquisições e o movimento de verticalização de certos mercados que gerou as desigualdades regionais e econômicas - foi, um passo antes, o agigantamento inútil do Estado que puxou as empresas para que tivessem tamanho compatível com as necessidades arrecadatórias desses mesmos Estados.
Em uma coisa eu concordo com os keynesianos locais (antes do passeio na quermesse): o mundo do pós-Guerra se dividiu em praças e a China e Leste Asiático assumiram o papel de parque industrial do mundo. Os EUA se tornaram o parque financeiro do mundo; América Latina se tornou o pasto, o pomar, a granja e a horta global. Parte da AL (leia-se, Brasil) ainda passou a assumir o papel de sítio de minérios; quando o Oriente Médio assumiu a função de posto de gasolina do mundo; enquanto a Índia e parte da Eurásia ficou com a tarefa de ser o parque de serviços do mundo, especialmente a central mundial de telemarketing. Essa visão dos "progressistas locais" é uma grande sacada - e para por ai. Dessa sacada, entretanto, podemos ver como os Estados se agigantaram com mãos enlaçadas com as grandes empresas que o sustentam até hoje. Sabemos todos que sem essas grandes empresas os Estados acabam. Não há socialista no mundo que queira acabar com empresários corruptos, com Odebrechts, com Petros, com estruturas, pois, de fato, eles sustentam os Estados que sustentam sua máquina burocrática. Aprenderam a lição de que administrar uma empresa é um saco, é um pain in the ass e por isso, até Mao delegou essa função (mediante MUITA paga e retorno, grandes rebates) para alguns "empresários", "multinacionais", "campeões nacionais" (escolhidos a dedo).
Nem um lado nem outro olha para o Século XX sob o ponto de vista dos Estados, da explosão da dívida pública, do apodrecimento da poupança interna e, tudo isso, para beneficiar o gigantismo Estatal que nem os EUA foram capazes de escapar.
Falar do capitalismo nórdico hoje e do capitalismo do leste asiático como se esses modelos fossem a solução é querer olhar a pizza pela borda - mais hora, menos hora, a conta chega e, diga-se, chegará para eles também! É questão matemática - basta ver a explosão da dívida pública nesses lugares e a curva de retorno dos investimentos gerados pela poupança interna. E não adiante estatizar mais ou voltar aos tempos da lavoura arcaica que os iPhones não deixarão mais isso acontecer. É fato.
Essa bobagem de que 5 bancos dominam Wall Street se repete em todos os cantos do mundo: aqui no Brasil estamos em 4, no Japão são 3, na Inglaterra são 2 e meio e assim por diante. Ah, para não ficar nessas mesmices, lembremos que na nordicíssima Dinamarca são 3 bancos que dão as cartas... Ufa, faltou a China né? Lá são 4 também - todos do partidão...
Simplesmente todos os mercados do mundo apresentam essa característica e aquela infinidade de tabelinhas e números que apresenta Piketty são troças para boi dormir se não há, no paralelo, uma análise do crescimento da dívida pública para sustentar ações de Estado, que puxam as empresas escolhidas para sustentar esse mesmo Estado com tributos (que elas, seus clientes, consumidores, fornecedores e funcionários também pagam). E para isso, esse capitalismo planejado, esse New Industrial State (para lembrarmos Galbraith) precisa de empresas que acompanhem a necessidade do Estado, que puxa esse sistema para o seu benefício e, por consequência, do partido que está no poder, e, por consequência, do grupo partidário que conseguiu colocar o partido no poder e, por consequência, das pessoas desse grupo partidário que articularam esse esquema todo com os empresários que sustentam isso tudo (quando o empresário e o político não recaem sobre a mesma pessoa, como naquela Itália berluscômica). E isso não tem a ver com esquerda nem direita, não tem a ver com capitalismo nem com liberalismo nem com socialismo, nem com neoliberalismo nem com neossocialismo - tem a ver com o tamanho do Estado, este sim, o verdadeiro too big to fail de quem perdemos totalmente o controle e não sabemos mais como fazer esse obeso mórbido voltar ao peso ideal ou, ainda, desparecer.
Seu desaparecimento tende a ser do pior jeito - por morte traumática ou por explosão, exatamente da mesma forma como ocorreu com Mr. Creosote no Sentido da Vida de Monty Python.
Esta é uma agenda de nosso hebdo que estamos discutindo com leitores há anos.
Segue abaixo uma das respostas enviadas para um leitor que veio com a tese de Piketty e recebeu esta resposta:
Vejo a concentração como resultado de uma emasculação estatal baseada em anabolizantes econômicos. Não foi apenas a produção de óleo e gás que se concentrou; foi a própria noção de estado que puxou isso para graus insuportáveis. E trouxe para si os motores do dinheiro como puxadinho de estados falidos que, esses sim, são os verdadeiros "too big to fail". Os estados estão insuportavelmente gigantes, paternalistas e ate meio bobalhões. Nunca o estado federal estado-unidense foi tão gritantemente gigantesco. A briga da federalizacao/estatizacao do espaço social desde o SOx Act e o Patriot Act tem tornado o Big Brother insustentável (por si mesmo). A máquina é cara, gigantesca e extremamente ineficiente, levando Trumps ao poder. Por aqui a corrupção passa a ser motor de tudo isso, assim como um atleta que cresceu as custas de anabolizantes para depois passar a viver de omeprazol, visando resolver um problema que ele mesmo criou no próprio fígado e estômago, por conta do crescimento falso e antinatural que ele mesmo gerou pra si. Nossos juros são o nosso omeprazol.Sim meus caros - defendemos que o too big to fail não deve estar estampado na recepção dos grandes bancos; do Citi, do BofA, do JPM-Chase, do DB, do Itau; ou das grandes empresas, da Petrobras, da BP, da Microsoft, da Apple: nenhuma dessas é too big to fail. Barclays, que assumiu a Lehman e failed. Enron era a maior de todas e failed. Todas estão sim sujeitas a morte súbita (fale com Joesley B. e ele te explica sob o ângulo da JBS isso que estou querendo mostrar).
Veja a UE - os estados estão tomando conta de um espaço social que está arrochando a população e o povo reage com neonazismo (a forma por excelência do "estado inchado eficiente", do estado que "cuida de mim"). Oriente Médio não dá nem pra conversar por aqui - depois que caiu o Império Otomano a ideia de Estado (segundo o que melhor atendia às demandas do pós-Guerra) teve que acomodar ate Alah e Maomé e olha onde estamos chegando.... Esses estados todos misturados estão levando o mundo a graus de desigualdade cultural (não apenas econômico, social ou financeiro) que força as pessoas ao confronto direto nas ruas. Não apenas na Europa, que enfrenta o terrorismo de "Estados Islâmicos", mas no Brasil também, que enfrenta o terrorismo de "Estados de Comandos Vermelhos ou da Capital" e que saem de dentro de Estados supostamente legítimos como o Brasil, a Síria, o Iraque. Não se sabe nem ao certo quem combater, contra quem declarar guerra pois os Estados cresceram a níveis too big to fail e ainda permitiram que microestados crescessem no paralelo gerando uma baderna causada pelo próprio gigantismo dos Estados.
Estamos no limite de uma terceira guerra mundial caso não estampemos nos estados o seu real valor de face: uma instituição que deveria fazer o mínimo necessário para que o máximo possível saia legitimamente do nosso trabalho (exclusivamente).
Too big to fail é o Yemen, a Arábia Saudita, o Estado de Israel, o Estado Palestino, a Alemanha, a França, o Reino Unido, os EUA e... o Brasil!!!
Sim, o Brasil - com tantas coisas estúpidas que são feitas aqui, é absolutamente incompreensível como sobrevivemos diante de tantos bilhões de cretinices praticadas. Bem, eu só consigo explicar se assumir que o Brasil é que é o verdadeiro too big to fail e, por assim dizer, ao lado de seus cento e noventa e poucos amiguinhos na ONU, os verdadeiros culpados pela desigualdade mundial.