terça-feira, 13 de junho de 2017

A desonestidade nossa de cada dia

por Dom Fernandes III

Desde que Vargas inventou o tal Estado Novo, a máquina estatal no Brasil só cresceu.

Hoje estamos como Mr. Creosote, no famoso Sentido da Vida seriamente estudado pela quasae-Universidade Monty Python: próximos de uma implosão por "con-gestão".

Esse crescimento levou para a sua estrutura uma horda de hunos, uma fileira imensa do bacharelismo, essa turma do apego bizantino aos livros, para sair de um trabalho perante o Poder e militar dentro, qual seja, no próprio Poder. O Poder no Brasil, a partir do Estado Novo, se bacharelou por completo, ficou bizantino e "desencatou-se com a realidade".

Isso foi obra de Vargas que Sérgio Buarque de Holanda não capturou, por questão de milésimos de décadas. Não julgaria coincidência que Holanda, ao usar Creonte em seus estudos, Monty Python tenha sugerido o mesmo com Creosote.

Mas desde Vargas, o bisavô do peleguismo praticado até hoje na periferia do Poder, coincidência ou não, tornamos a desonestidade uma regra.

Muitos confundem desonestidade com rapina, o simples roubo ou furto. Essa seria, digamos, a forma "romântica" de desonestidade. Teria ela evoluído para a corrupção, tendo na base a mentira aliada à rapina: na raiz, portanto, o falso, o engano ou, como disse Gianetti, o "autoengano" - eis a matriz da nossa desonestidade.

Mas há item a Lei de Gérson, evoluída agora para Lei de Gil (Gil II, Gilmar Mendes, que evoluiu o "vale tudo" de Gil, do Cruzeiro, a um grau impensável).

Sim: há mais na nossa desonestidade do que a mera caixinha para o zelador levar sua correspondência primeiro ao seu apartamento ou voltar a mangueira de esguicho d'água para o parabrisa do seu carro enquanto ele lava a garagem e aproveita a oportunidade para lhe fazer esse "favorzinho". Há mais do que a caixinha para o garçom de festa de casamento que lhe traz aquele "chorinho" de uísque que ao fim da festa se torna um "lamento escocês".

Há em nós uma complexidade na desonestidade que nos torna um case mundial em termos de não-honestidade. E neste ponto, lembremos: honestidade (me informou nosso consultor Pinto Cançado) vem de honor, que faz alusão a honra ou dignidade, algo que o espanhol Sêneca dizia estar em falta na Brasília de então, vulgo Roma.

Perdemos uma certa identidade cultural, pós-construída no Carnaval de Vargas que Narloch curiosamente mostrou, trocando-a por uma burocracia estatal de vantagens e privilégios.

Modernizamos os privilégios reais para vantagens institucionais com algumas facilidade burocráticas.

Vargas praticamente institucionalizou a desonestidade no Brasil; tornou-a regra quando antes era mera piada picaresca dos folhetins de Manuel Antônio de Almeida ou drama de Aluízo de Azevedo.

A desonestidade como meio de vida tornou-se algo sério, mas, desde então, mesmo podendo identifica-la (até em nós mesmos), temos dificuldade em defini-la, qual seja, em dizer onde começa a nossa "criatividade" e o nosso "improviso", em ponto a partir de onde possa ter terminado a nossa dignidade e a nossa honorabilidade, enfim, a nossa honestidade.

Não nos envergonhamos de improvisar e criar, ainda que em sacrifício da nossa dignidade e da nossa respeitabilidade.

Muitos dizem que preferem contratar funcionários "preguiçosos mas honestos", pois se o eficiente trabalha bem mas leva espelhos e moedinhas de Don'Ana, o preguiçoso não leva nada a não ser a minha paciência. Autoengano (enfim, desonestidade de quem contrata) para justificar a desonestidade geral: equivale a dizer, "prefiro ser enganado a prestações do que ser enganado a vista". Esse é o raciocínio "Casas Bahia" da desonestidade: o honesto-preguiçoso "rouba" indiretamente, sendo ineficiente e faltando ao trabalho de forma desnecessária, tomando para si um tempo que foi "vendido" ao patrão. O desonesto-eficiente apenas cumpre o tempo e entrega pelo valor contratado, mas faz um desconto a vista ao carregar as moedinhas de Don'Ana sorrateiramente. (leitor: favor não usar marxismos de toalha de banho para responder a esse argumento - o exemplo da venda de trabalho é proposital).

Isso nos volta os olhos para essa batalha diária de exercício constante da desonestidade em Vera Cruz: a mais grave e cafejeste de todas as práticas de engodo é aquela identificada no que modernamente passamos a chamar de desonestidade intelectual.

A desonestidade intelectual é uma espécie de falsa premissa, de discurso com segundas intenções, é uma falsidade ideológica na declaração de princípios, pois no fundo, no fundo, toda ação obedece a uma "agenda" e não a um compromisso com a dignidade.

Até mesmo a invocação do princípio da dignidade humana tem se tornado, paradoxalmente, indigna.

Exemplo pronto e acabado é o do Professor Evandro, universitário de alto rankeamento burocrático na escala departamental da universidade pública para quem presta serviços, cheio de láureas que, a beira de um colapso financeiro pessoal devido ao inadimplemento do Estado pagador, foi às ruas pedir emprego.

Em menos de 24 horas foi atendido com várias propostas e, todas do exterior, onde exatamente laureou-se com Mestrado, Doutorado, e Pós-Doutorado, viu-se em um checkmat: não pode criticar a globalização, não pode dizer que não troca o Brasil e o violento Rio de Janeiro por nada, não pode culpar o estrangeiro pelas mazelas do Brasil; enfim, teve que rejeitar as propostas com base no "amo o que faço".

A premissa era: estou passando fome, mas diante da proposta de emprego, a fome não era tão grande (se é que existia) e a coisa, na verdade, não era bem assim - disse que havia reservas pessoais para pagar as contas e seguir a vida no conforto do funcionalismo público. Confessou que usou o discurso para pressionar o governo, pois nunca desejou, no fundo, deixar o funcionalismo público.

Enfim, não pedia emprego; estava fazendo política, de fato.

Foi pego, de forma muito semelhante a quem tendo sítio em Atibaia, insiste em dizer que basta o registro de imóveis para provar que o sítio não é seu.

O conteúdo do discurso era falso, desde a premissa até as conclusões: não estava passando fome coisa nenhuma, não queria emprego, não estava precisando de dinheiro - a intenção era chamar atenção, ainda que para isso o discurso fosse falso (embora baseado em uma peroração verdadeira - os títulos e a qualificação, portanto, verdadeiras).

Hobsbaw teria escrito um volume, se fosse vivo, de Era da Pós-Verdade ou, convenhamos, a Era das Desonestidades, para descrever esse mundo de Trump a Kim Jong-un, passando pelo Brasil e pela Venezuela e terminando no Yemen ou no Cazaquistão de Borat.

Mas há exceções, felizmente.

O Diário Bola Preta defende a democracia direta.

Não se acuou quando perguntado sobre a legitimidade de eleições diretas, ainda que se digam que a defesa da democracia direta, neste caso, beneficiasse Lula e o status pos-varguista que este hebdo denuncia diariamente.

Lula e os seus já desistiram da democracia direta e das Diretas Já, pois no fundo, no fundo, as defenderam em frontal assunção de desonestidade intelectual. A premissa de que eleições diretas beneficiariam Lula ou PT se desfizeram junto com a falsa bandeira das Diretas Já ou a PEC das Diretas encampadas pelo próprio PT.

Lançamos a campanha das Endireitas Já e nada nos convenceu de que ela seja fora de propósito.

Seguimos firmes em nossos propósitos e opiniões e se nos oferecerem mais trabalho, estejam certos de que não faremos como o Professor Evandro, pois, sim, amamos o que fazemos, mas amamos tanto, que fazemos questão de fazê-lo sempre e para qualquer chefe honesto e digno que, item, ame o que fazemos, tanto quanto nós.

No day after do 12 de junho declaramos: para amar um trabalho é necessário que primeiro sejas intelectualmente honesto ao fazê-lo; senão não é trabalho, não é amor, não é digno, enfim, não é honesto.