segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A Useful Idiot

Vera Cruz Times
Por Cícero Esdraas Neemias e María-Guertas Abellán García

Escolheu-nos o editor para esta cobertura sobre a questão islâmica e suas consequências políticas, provadas pelo primeiro mês de governo Donald Trump.

Depois de termos o descalabro de ter que lidar com um Donald na presidência e um Mickey na vice, o choque de realidade via Twitter nos deu a certeza (que era apenas desconfiança na campanha), de estarmos diante de um energúmeno em níveis dílmicos.

Trump é uma versão yankee do obscurantismo patriótico bizarro de Rousseff. São produtos idênticos de mesma matriz populista que gerou, anos atrás, figuras como Stálin, Hitler, Mussolini, Franco, Vargas, Perón, Salazar, Che, Mao e outras porcarias consectárias que tentam se diferenciar em um socialismo pró-comunismo e um socialismo anti-comunista (diferença que, “noves fora”, só Marilena Chauí e seu ódio à classe média consegue exergar).

Rafael Correa (que se despede hoje, ao lado de seu fiel escudeiro Tiko-Tiko), Cristina Kirschner, Néstor Kirschner, Maduro, Chávez, Morales, Ortega, Lula, Duterte, Rousseff, Pútin, Bashar El-Assad, Mohammad Morsi e essa gente louca de ISIS e do exército Houthis é farinha de um mesmo saco de onde saiu o produto básico para tirar do forno e servir, no Salão Oval, essa aberração de cabelos alaranjados chamada Donald Trump.

Seu ápice de idiotice (até agora) deu-se naquele fatídico decreto que o Poder Judiciário já freou e, aconselhado, Trump desistiu. Dizem que interlocutores perante a Suprema Corte lhe trouxeram recados para que desistisse, visando evitar um vexame judicial que poderia fazer com que os próximos 3 anos e 11 meses de governo o transformassem um morto-vivo roussíffico perambulando pelos jardins da Casa da Branca (e, desta vez, sem a auto-ajuda de Paulo Coelho em mãos, coisa que só a alta nata da política yankee tem acesso).

Seu próximo ato de Declaração Universal de Energumenismo será no tal do Muro – terá ele mesmo que construí-lo, with his bare hands: ou alguém acha que a massa de pedreiros que atuam nos EUA (peruanos, colombianos, cubanos, brasileiros, nicaraguenses, venezuelanos, dominicanos, haitianos, panamenhos, paraguaios e... mexicanos, sim, eles!!!) irá mover um tijolo sequer para por em pé um muro que eles mesmos tenham parentes a cruzá-lo brevemente? Ou será que o eleitor de Dakota de Norte ou de Montana irá descer até a fronteira, a cavalo, para construir o muro para separar essa turma do Taco Bell, como se estivéssemos em uma película de John Ford refilmada por J.J. Abrahams? – A Saga do Muro (já pensaram??? estrelada por Charlton Heston, o Moisés...).

Deixando essa dúvida do Muro em suspenso (que, apostamos, não será construído por falta de mão de obra, forma simples de culpar o desemprego gerado FDR e herdado por Trump), voltemos ao tema do momento, o decreto anti-imigração.

Uma coisa é fato: todos, sem exceção, reclamaram do decreto, sem tê-lo lido e, pior, sem ter a menor noção dos efeitos, causas remotas que incluiram aqueles sete países e consequências a médio prazo (independentemente do banimento de cidadãos desses países nos EUA) das coisas que vem ocorrendo nesses países especificamente.

Um teste para você, leitor vivo, leitora espertinha: diga de cabeça quais são os sete países objeto do decreto... dizem até que há leitores e leitoras que descobriram agora que os “barrados no baile” são “apenas” sete...

Ah, pegamos você! Todo mundo reclama mas ninguém sabe de cabeça nem ao menos quais são os sete países. Voi-lá: Síria, Líbia, Irã, Iraque, Somália, Sudão e Iêmen. Ei-los.

Mas a questão não é tão simples, pois o decreto de 27 de Janeiro de 2017 simplesmente não os cita. Meramente, em referência cruzada ao INA (Immigration and Nationality Act de 1952) diz que “the immigrant and nonimmigrant entry into the United States of aliens from countries referred to in section 217(a)(12) of the INA, 8 U.S.C. 1187(a)(12), would be detrimental to the interests of the United States, and I hereby suspend entry into the United States, as immigrants and nonimmigrants, of such persons for 90 days from the date of this order (excluding those foreign nationals traveling on diplomatic visas, North Atlantic Treaty Organization visas, C-2 visas for travel to the United Nations, and G-1, G-2, G-3, and G-4 visas)”.*

* - um dado curioso da linguagem adotada pelo decreto é que a norma atinge “immigrants” e “non-immigrants”, mas não trata de “refugees”. A diferença básica entre um imigrante e um não imigrantes está na... intenção de imigrar. Um turista é um non-immigrant, por exemplo. Um refugiado não se enquadra nem em uma da categoria (pois não é imigrante) nem em outra (nem é não-imigrante). Há no refugiado a deliberada “necessidade de remoção”; não há o conceito de “vontade de imigrar”. Pelo contrário: o refugiado ou asilado tem sempre a esperança de voltar e vive sempre uma vida provisória na nação que o acolhe. E, dizem, foi com base nessa imprecisão que Trump recuou. Quando soube que o seu decreto abria brechas para refugiados, além da chacoalhada que tomaria na Suprema Corte, decidiu contentar-se com a conveniente medida do Juiz James Robart, que fez-lhe um favor.

Voltando a norma em si, veja que ao criar exceções, limites temporais da restrição e recorrer a artigos de outras leis, Trump, the useful idiot cria, na largada, uma gigantesca confusão jurídica, sobretudo porque a section 217(a)(12) do INA cita expressamente apenas Síria e Iraque e por meio de uma “linguagem jararaca” abre-se para "any other country or other area of concern" . Desnecessário dizer que ao “armar o cu pra pegar caralho”, como dizem por ai popularmente, Trump teve que emendar esse curioso decreto (que, diga-se de passagem, duvidamos que até ele tenha lido...) por meio da ajuda da DHS (aquele mesmo departamento que emprega várias pessoas nos aeroportos vestidas de uniforme azul operando scanners e cães farejadores), abreviação para Department of Homeland Security, que emitiu um fact sheet esclarecendo esse artigo do decreto trúmpico nestes termos: “For the next 90 days, nearly all travelers, except U.S. citizens, traveling on passports from Iraq, Syria, Sudan, Iran, Somalia, Libya, and Yemen will be temporarily suspended from entry to the United States. The 90 day period will allow for proper review and establishment of standards to prevent terrorist or criminal infiltration by foreign nationals”.

Sem precisar entrar no mérito, podemos convencionar que sob o ponto de vista técnico (jurídico, apenas) o decreto é de uma peça de majestosa barbeiragem.

Ele atesta que, sim, temos um idiota cercado por energúmenos na Casa Branca.

Mas a pior parte não vem do decreto – vem, sim, da incapacidade de muitos trombeteiros de plantão (e, aqui, os trombeteiros não são os aliados de Trump, mas a turma que reclama das coisas sem saber do que está falando) de, propriamente, se informar sobre o que está ocorrendo no entorno desse decreto.

Isso começa quando as pessoas (mais de 95%) não sabe de cabeça nem quais são os países e muito menos a forma com que são “mencionados” no decreto. Mais de 98% não sabe que o decreto tinha validade de 90 dias e, o mais espantoso – pergunte a qualquer brasileiro que se ofende quando um americano diz que a capital do Brasil é Buenos Aires: declare, de memória, o nome da capital de ao menos 3 desses 7 países e verás que nem nessa mini-prova de geografia o trombeteiro passa.

Agora, se você, leitor descocupado, leitora madrugadora, souber: 1. de cabeça quais são os países do Decreto de Trump; 2. como eles são “citados” e porque foram escolhidos para figurar nesse decreto (que, como já dissemos, faz tabula rasa com Arábia Saudita, Egito, Afeganistão, Paquistão, Jordânia e outros que poderiam chamar a atenção por motivos semelhantes culturalmente a Irã, Iraque e Iêmen); e 3. por fim, last but not least, quais são as sete capitais oficiais e oficiosas dos regimes “citados” no decreto – bem, então vocês nem devem continuar seguindo nesta matéria. Parem de ler imediatamente pois vocês com certeza já sabem tudo o que vai ser dito aqui e se aborrecerão. Take a pie e use melhor o tempo futuro, pois o pretérito, meus parabéns, já usastes como um Embaixador.

Mas, se você, leitor, leitora, ambos em dúvida, não sabem uma, duas ou alguma das questões acima, é melhor que siga na leitura, pois fatalmente vocês não têm informações suficientes não apenas para opinar nessa questão, mas sobretudo e muito provavelmente, sequer para votar nas eleições de 2018 que ocorrerão aqui no Brasil. Acredite, há semelhanças...

O papel de useful idiot que Trump se prestou pode ser bem estampado pelo país mais obscuro dentre os sete citados: Iêmen, ou “República do Iêmen”, em árabe simplesmente Al-Yaman ou Al-Yamaniah. É um país que tem lá seus 5.000 anos idade que não cabem ser analisados neste artigo. Cobre uma área equivalente ao dobro do Estado de São Paulo, algo do tamanho mais ou menos do Estado da Bahia ou de Minas Gerais. O último PIB é mais ou menos equivalente ao rombo da Petrobras: coisa de US$50 bilhões. Sua economia depende integralmente das reservas de petréleo, exportadas em sua totalidade e responsáveis por aproximadamente 98% do PNB e das receitas geradas no Iêmen. As reservas estão em torno de 4 bilhões de barris de óleo. Sim, essas são as reservas totais. Para se ter uma noção, o pré-sal tem algo em torno de 175 bilhões de barris. Isso, estima-se (pela velocidade de retirada dos últimos 10 anos), tornará o Iêmen no lugar mais improdutivo do mundo sem um único pingo de óleo para pagar uma das mais altas taxas de corrupção do mundo, tornando completamente insolvente já a partir de 2025. Qual seja, esse estoque deve durar não menos do que outros dez anos pela frente.

Não à toa, ostenta a incrível marca de 160º em IDH (o Brasil está em 75º e a Venezuela em 71º, apenas para se ter algum parâmetro), posto que o pior país, Níger, ostenta no 188º com um índice de 0.348 em face do 0.498 do Iêmen (Brasil tem o seu consolidado 0.755 e o primeiro colocado, Noruega, 0.944 dentro de possíveis 1.000). Já o índice de percepção da corrupção deixa o Iêmen em 170º (dentro de um quadro de 176 países analisados) ostentando a marca invejável de 14/100 pontos (a Dinamarca, país menos corrupto do mundo tem a marca de 90/100 e o Brasil da Petrobras está 79º com 40/100 empatado com China e Índia, colocando boa parte dos BRICS como exemplos de corrupção moderna para todo o mundo).

Voi-lá: sua capital é Sana’a, retratada no jogo Uncharted 3 e usada por Pasolini para filmar o seu clássico Decameron, de 1970. O bairro da Cidade Antiga de Sana’a, onde ficam os portais do Iêmen, o Bab-al-Yaman, é considerado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Apesar de tantas coisas, pergunta-se, como o Iêmen foi parar nessa “lista do ódio de Trump”? A dúvida apenas revela que o Iêmem é de fato e com acerto, talvez um dos lugares mais uncharted do planeta e da história.

E neste ponto, é difícil escapar da história e podemos pular ao menos uns 4980 anos para nos concentrarmos nos 20 últimos, que é quando a coisa “degringola” de vez para o estado atual.

Durante muito tempo o Iêmen foi um quintal do Império Otomano. Diga-se, aliás, de passagem, que os sete países do decreto do ódio de Trump fizeram parte desse Império por séculos (incluindo os países africanos do decreto, como Somália, Sudão e Líbia). Em 1908, uma espécie de tataravó da Primavera Árabe, uma tal de Revolução dos Jovens Turcos deu início a tudo. Essa revoluceta desaguou numa certa dissolução do Império, que anos mais tarde alçou ao cargo máximo na Turquia um tal de Atatürk, em 1923, que tinha um discurso secularista, nacionalista e anti-califa que alimentou boa parte da campanha da recente Primavera Árabe, mesmo sem que citassem uma linha dos discursos de Atatürk. Na contramão de Atatürk, a turma fundamentalista e pro-califado, que acabou se escafedendo das imediações de Istambul e foi fincar bandeira na Síria e na Arábia Saudita.

E o Iêmen com isso?

Saindo o Império de cena, cada um ficou ao seu léu e não demorou para que os resultados da I Guerra incidissem não apenas sobre os Balcãs, mas também sobre aquela parcela do mundo que estava, digamos, “sem dono”. Surge nessa época o Iêmen do Norte. O resto do território foi chamado criativamente de Iêmen do Sul, embora no mapa ficassem meio que lado-a-lado. Eram vizinhos, tendo o Iêmen do Norte na porção oeste do atual território (incluindo a capital Sana’a) e o Iêmen do Sul na porção leste, qual seja, no “resto do território”. Essa situação bizarra (que nos lembra bem das aulas de geografia para o vestibular que fomos obrigados a prestar em fins da década de 1980) não tinha muita explicação clara, exceto pelo mais puro e simples ato de abandono por parte dos turcos. A história do Iêmen aquela altura seria como se o governo brasileiro atendesse à recomendação do jornalista Diogo Mainardi e passasse a cobrar o cavalo da Bolívia abandonado o Acre a divisões que o levassem a ser partilhado entre Acre do Sul (capitalista) e Acre do Norte (comunista). Essa mania estava em voga no mundo nesses recônditos de miséria: foi assim na Coreia, foi assim no Vietnam, foi assim no Camboja mas não foi assim na Irlanda!

Coreia, Vietnam, Camboja, Iêmen (e se assim fosse na devolução do cavalo, possivelmente teria ocorrido o mesmo com o Acre): ex-colônias improdutivas que vivem de dois produtos ótimos para recônditos afastados do mundo – ignorância e cargos públicos. Populistas de direta, atraídos pela ignorância, levaram a porção norte enquanto que os populistas de esquerda, atraídos pelos cargos públicos e pela corrupção (esta sim, a única que foi dividida de forma irmanada entre esquerdistas e direitas de oportunidade), ficaram com o Sul.

A “unificação” veio na década de 1990 e o Iêmen virou um país só: juntou de novo ignorância, corrupção, populismo, militarismo e cargos públicos em uma só nação e assim instituiu uma ditadurazinha populista parecidíssima com o que Trump quer fazer nos EUA. Alguns comunistas ficaram tristes com a divisão do butim e deram início a um movimento separatista criando novamente o Iêmen do Sul, país não reconhecido nem por parte de quem os criou. Mas isso apenas traz mais tempero a uma feijoada árabe-muçulmana que ficou pronta em fevereiro de 2011 e tomou o nome de Primavera Árabe (na versão iemenita, foi a Revolta do Iêmen).

No período pós-unificação, guerra civil estourada por movimentos de esquerda, que fizeram coalizões políticas de conveniência com grupos como Al-Qaeda e os xiitas Houthis, traziam separatismos de coalizão apenas para azucrinar e bagunçar o poder central, que estava, há 30 anos, nas mãos da família Saleh, liderada pelo velho Abdullah, que já preparava Ahmed, seu filho, para herdar essa ditadura de coalizões.

Abdullah Saleh governou o Iêmen assim, digamos, como fez o PT no Brasil ao longo dos últimos 13 anos – coalizões com pequenos grupos garantindo a eles um pedaço do butim em troca de “estabilidade política”, que era gerada e gerida na base do velho “toma lá, dá cá”. Saleh se marketeava como o artífice dessa estabilidade e pregava que sua ausência poderia levar o país, que já estava no fundo do poço da economia (desemprego, inflação, corrupção), a um caos político e bélico sem controle (mágica que só ele sabia realizar). Tentou fazer-se monarca, uma espécie de Caesar do Iêmen, presidente perpétuo cuja sucessão seria por ele conduzida e o sucessor, por ele indicado e nomeado. Tudo por meio de uma emenda constitucional que o declarasse uma espécie de califa secular.

O passo maior que a perna rumo a perenização pelo poder (e com um discurso em prol do povo) deu a quem já estava de saco cheio dele, o argumento faltante para tirá-lo.

Ao olharem para o não tão vizinho (mas ex-parceiro de Império Otomano) Egito e o menos vizinho ainda Tunísia, resolveram os iemenitas ir para as ruas naquele fevereiro de 2011 e, ao contrário de protestar contra aumentos de centavos nas tarifas de ônibus, focaram as reclamações em Saleh e na sua tentativa bizarra de se tornar o Caesar do Iêmen. A esses protestos agregou-se geral insatisfação pelo modus operandi de Saleh no governo, identificado como a causa da pobreza geral, da corrupção exorbitante, do desemprego altíssimo. Em um dia, reuniram em Sana’a 16 mil manifestantes, sendo 10 mil oriundos dos bancos escolares da Universidade de Sana’a. A parte curiosa deve-se a outro modus operandi, neste caso, dos manifestantes. Sabe-se que a Primavera Árabe foi coisa das redes sociais, mas no caso do Iêmen o word of mouth (convocação boca-a-boca) e as convocações fora de foros eletrônicos públicos (qual seja, o uso do SMS, do email e de outros modos fechados de convocação) fez alguma diferença em relação à Tunísia, onde o Facebook e vários blogs abertos a toda a comunidade foram usados com maior extensão. Explica-se assim: o grau de liberdade dos tunisianos e o menor risco de patrulhamento permitiu-lhes uma divulgação muito parecida com as usadas nos protestos brasileiros de 2013-2016. Já a possibilidade de patrulhamento pela ditadura Saleh fez com que as convocações ocorressem pelo mesmo modus operandi do ISIS e do Al-Qaeda: word of mouth combinado com um certo assédio privado eletrônico (via Inbox, email, SMS, mensagens instantâneas e assim por diante – nada aberto nem público).

Enfim, após dias de protesto em rua, incluindo uma convocação para o “Dia de Fúria”,que ocorreu em 3 de fevereiro de 2011 por intermédio da convocação de ativistas de esquerda e levou 20 mil pessoas a um confronto aberto nas ruas de Sana’a, o “nós contra eles” teve Saleh ao centro. Os partidários de Saleh confrontaram-se com os seus adversários, que dentre eles contavam com excluídos de esquerda, democratas, membros do Al-Qaeda, xiitas Houthis e toda a colcha de retalhos de excluídos do regime Saleh. Bem que ele tentou um “toma lá, dá cá” absoluto, mas inevitavelmente o estado depreciado da economia deixou muita gente de fora, convidando-os ao antagonismo. Ao fim de dois ou três meses os protestos passaram a ser quase diários e contar com uma média de 100 mil pessoas de várias origens e motivações que se uniram contra o “fantasma da corrupção e do desemprego” encarnado em Saleh, o ditador da hora.

O resultado? Sim, Saleh caiu e essa turma de opositores (incluindo do “PMDB”de lá) subiu para partilhar o butim. Mais uma vez, não foram todos que conseguiram meter a mão no pote de mel e muita gente acabou ficando de fora. Mas a parte interessante é quem subiu para assumir a sucessão de Saleh.

Neste pormenor, parte das discussões na Primavera Árabe que ficaram ocultas e subliminares diziam respeito diretamente ao limite a liberdades que eram clamadas nas ruas: direitos das mulheres, liberdade religiosa, secularização do Estado, transparência – enfim, tudo aquilo que para muitos já é assunto de dar sono, lá, ainda, era tema de tirar o sono. O imporante era unir-se contra o “inimigo comum”, Saleh, ainda que isso implicasse em promover passeatas junto de black blocs do ISIS e do Al-Qaeda.

Do outro lado, o ditador Saleh fez igual Dilma Rousseff: culpou Washington por sua queda e vaticinou o “quanto pior, melhor”. Disse, várias vezes e com todas as letras, que os EUA estavam por trás de tudo para poder ficar com as riquezas do Iêmen (sem pensar que um capitalista, antes de estudar se ter riqueza, faz uma conta básica sobre os custos de acesso a essas fortunas que só Saleh enxerga).

A Primavera Árabe trouxe várias consequências, muitas todas ainda mal conhecidas e mal estudadas, dentre elas o chamado Inverno Árabe.

O Inverno Árabe atingiu países como Iêmen, além de Sudão, Iraque e Síria e, em parte, o Egito, mas não a Tunísia, o Marrocos ou a Mauritânia, por uma razão comum.  Somália, os EAU e a Arábia Saudita, por outra, também não tiveram Inverno Árabe. Notem que alguns países com causas comuns constam do decreto do ódio de Trump, outros não, enquanto que as causas da Somália ainda oscilam entre o grupo em que está técnicamente inserida e o grupo de que fazem parte Iêmen e Síria. Mas ao fim e ao cabo, esses grupos partilham a mesma causa de ter tido ou não o Inverno, muito diferente do grupo da Tunísia.

No grupo de Arábia Saudita, temos uma ditadura monárquica das mais violentas já vistas, cujos protestos foram abafados sem ter gerado qualquer efeito político por puro e simples uso da truculência.

Já a truculência não foi suficiente no caso do grupo envolvendo Iêmen (pois gerou a queda do regime) e não foi a solução apresentada no caso de Tunínia, onde tivemos mudança de regime seguida de novo governo democrático e razoavelmente estável, com ausência total de qualquer traço de truculência por parte do Estado contra os protestantes. A diferença principal está pois na ausência, em face das Primaveras promovidas nos países pertencentes ao grupo da Tunísia, de uma certo Inverno Árabe ou de um abafamento por meio do uso da força bruta. Neste e no caso anterior, a Primavera Árabe gerou violência, no caso do grupo Tunísia-Marrocos-Mauritânia, não houve violência: nem prévia, nem posterior nem concomitante. O grupo liderado pela Arábia usou de uma espécie de “violência a priori” e matou qualquer efeito no ninho. No caso iemenita a violência foi posterior, assim como se deu na Síria, uma vez que o estado, mesmo tentando ter lançado mão da violência, não o fez de maneira tão eficaz quanto Arábia Saudita, por exemplo.

Inverno Árabe, especificamente no contexto das Primaveras Árabes (caso do Iêmen), significa que os protestos das Primaveras geraram um estado de caos político com violência generalizada e institucionalização do terror como método de busca da estabilidade e administração dessa transição que dura até hoje. Algo muito parecido com o que fez Mao na China pós Chiang.

E a diferença básica que levou uns ao Inverno e outros ao Verão está justamente na base da sociedade de cada um desses países árabes: uns, do grupo da Tunísia, possuiam a chamada classe média bem solidificada; outros, como o Iêmen, não.

Essa coisa que tanto ódio gera em Marilena Chauí e seus seguidores petistas está no centro de todas as explicações para os Invernos Árabes que se seguiram a certas Primaveras.

A ausência de uma classe média estável no Iêmen abriu oportunidades para que os vários grupos elevassem seus conflitos tribais a um nível nacional, muito facilitados pela estabilidade sedimentada na ignorância. A lei do mais forte imperou e o grupo dos xiitas Houthis ganhou muito espaço na disputa pelo poder no Iêmen. Como rebeldes e defensores de “tradições”, inseriram o país na guerra mais sangrenta travada no mundo atualmente (mais sangrenta, inclusive, do que a guerra na Síria ou nos Morros Cariocas). Por ser uma terra de posição geográfica privilegiada (acessá-la depende integralmente de atravessar a península arábica ou navegar pelos “tranquilos” mares da Somália, onde temos cemitério de navios e piratas nada amistosos ou ainda tentar aportar via mar da arábia), os grupos ISIS e Al-Qaeda se uniram para eleger o leste do Iêmen (antigo Iêmen do Sul) como uma espécie de estância de férias da turma dos turbantes negros. Xiitas Houthis, de outro lado, aliados com ex-aliados de Saleh brigam contra o sucessor de Saleh, os governistas representados pelo presidente confirmado Hadi (era um vice de Saleh que foi confirmado por 99% dos votos em eleição direta confirmatória).

Hadi, nesse período, já renunciou e já chegou a renunciar à renúncia; terroristas do ISIS em companhia de turma do Al-Qaeda dizem que os mandatários são eles enquanto os Xiitas Houthis dominam a maior parte do território e, pelo respectivo lado, fazem também suas declarações de “quem manda nessa porra somos nós”. Houthis, por outro lado, se entendem bem com o ISIS, pois bebem da mesma fonte: a Irmandade Muçulmana, uma espécie de TFP Muçulmana que existe por lá e foi fundada no Egito desde que o Império Otomano abandonou essa periferia toda (idos das décadas de 1910 e 1920). Esse abandono levou grupos a uma volta a um passado inexistente de glórias inventadas (coisa bem populista) e com forte viés nacional-socialista com tintas carregas de jihadismo e anti-americanismo. Esse grupo chamado Irmandade Muçulmana já foi considerado grupo terrorista (aliás, muitos ainda o consideram), mas fato é que na Primavera Árabe egípcia a IM teve papel central. Sem muito se importar com as vozes da IM que pregavam coisas bem estranhas e impunham muitos recuos em liberdades parcamente conquistadas, a ideia do inimigo comum Mubarak que precisava ser derrubado no Egito acabou por dar mais voz à IM que o simplesmente imaginável. No fim da Primavera Árabe egípcia, a IM tornou-se um partido que, curiosamente, elegeu o sucessor de Mubarak: Muhammad Morsi, do PLJ (Partido Liberdade e Justiça, a versão partidária da IM).

A IM ainda deu subsídios e doutrinas para outros grupos como os Houthis iemenitas e, bingo, o ISIS, atualmente presente no Sudão, Iêmen, Iraque e Síria. ISIS forma um estado autodeclarado califado e faz um discurso neo-anti-Atatürk com voltas a um passado que nunca existiu consolidando o jihadismo e o terror como ferramenta política.

Morsi caiu em 2013 e a IM e o PLJ voltaram à margem por mãos da Suprema Corte Egípcia, mas o estrago já estava feito, sobretudo longe da jurisdição egípcia: Síria, Iêmen, Iraque e Somália já bebiam do fel amargo espalhado pela doutrina jihadista da Irmandade Muçulmana.

Pois é – de fato, o Iêmen não é um lugar fácil de entender e de sua complexidade podemos intuir que não é uma terra com flores que se cheirem. Isso não dá razão a Trump, de modo algum.

O torna, de fato, um useful idiot.

Faz-nos pensar no mérito dessa decisão, a respeito de um país ser obrigado ou não a receber pessoas que portem documentos emitidos por um governo difícil de compreender e abarrotado de problemas de legitimidade.

É fato que o Iêmen, ao lado da Coreia do Norte, é um dos países mais fechados do mundo. Seus cidadãos não são permitidos a sair do país e, entre nós, nem tem por onde (basta olhar o mapa da região e ver que literalmente, não tem para onde correr).

Se os “cidadãos de bem” estão todos presos nas mãos de gente louca, o que me garante, aqui no Brasil, que a pessoa oriunda de um país como esse, portando um documento emitido pelas “autoridades desse país”, entra por eles “autorizada” e sem alguma “missão de governo” que nós, daqui, não conseguimos controlar?

É muito, muito, muito complicado o todo que envolvem os conflitos nesses países citados no decreto e, como dito, tudo o que os separa da Tunísia e a inexistência de uma classe média que Chauí tanto odeia.

Essa classe média freou a violência como consequencia dos protestos primaveris e onde ela não estava presente, imperou a violência pois na derrubada do inimigo comum, libertários e ditadores se uniram sobrando, sempre para estes, pedaço maior do butim.

Macri fez o mesmo que Trump na Argentina e contra outras nações e ninguém esperneou tanto quanto em relação a Trump.

O decreto de Trump não resolve o problema no Iêmen, mas deveria ao menos torná-lo evidente, o que também não está acontecendo, seja por culpa da imprensa, seja por culpa dos reclamões de plantão.

Seguimos a nossa Primavera Brazuca com características muito parecidas – achamos o inimigo comum, o culpado pelo desemprego, pela corrupção, pelo autoritarismo burocrático de cunho stalinista-maoista e a derrubamos. Mas na derrubada, abrimos espaço para Bolsonaro e Ciro Gomes, que fatalmente disputarão um segundo turno em breve no Brasil. São os nossos Morsis e Hadis de plantão.

Acreditamos que nossa classe média talvez seja tão qualificada quanto a da Tunísia, mas há ainda aquela dormência no corpo político gerada pelo peso da barriga (que gera certo formigamento nas nádegas) do MDB.

Trocamos aqui um bando de amadores na arte do roubo por verdadeiros profissionais, os únicos e derradores criadores do “toma lá, dá cá” e rumamos para o nosso Inverno Brazuca a passos de tartarugas do Projeto TAMAR.

Talvez não nos tornemos um Iêmen por faltar em nós uma Irmandade Muçulmana que alimente o PCC, o CV, o ADA, o FDN, o TC e as demais siglas do terrorismo brazuca que ainda carece de um “motivo político” para o seu respectivo terrorismo.

A esquerda tem se esforçado em dá-lo, vitimizando a turma das rebeliões como se o Carandiru tivesse sido tão ontem quanto a queda de Rousseff. Doutra banda, grande passo andou dando o STF ao criar um mecanismo de financiamento público para essa turma: as condições degradantes do Estado serão ótima fonte de renda (estatal) para esse grupo privado de ações públicas e, agora, definitivamente de cunho político, dado de bandeja pelo STF.

Sim, meus senhores, o Iêmen é quase aqui e o Brasil está quase lá.

A propósito, a capital da Somália é Mogadíscio, da Síria é Damasco, do Iraque é Bagdad, do Irã é Teerã, da Líbia é Trípoli, do Sudão é Karthum e do Iêmen pode ser Sana’a, Aden, Al-Mukala ou Tarim, dependendo de quem você acreditar (se no ISIS, no Al-Qaeda, nos Houthis, na turma de Hadi) – se der muitos ouvidos aos críticos que não leram este texto, pode até ser que você acredite que a capital do Iêmen é... Brasília!