Vera Cruz
Times
Por Cícero Esdraas
Neemias e María-Guertas Abellán
García
Escolheu-nos o editor para esta cobertura sobre a questão
islâmica e suas consequências políticas, provadas pelo primeiro mês de governo
Donald Trump.
Depois de termos o descalabro de ter que lidar com um Donald
na presidência e um Mickey na vice, o choque de realidade via Twitter nos deu a certeza (que era
apenas desconfiança na campanha), de estarmos diante de um energúmeno em níveis
dílmicos.
Trump é uma versão yankee
do obscurantismo patriótico bizarro de Rousseff. São produtos idênticos de
mesma matriz populista que gerou, anos atrás, figuras como Stálin, Hitler,
Mussolini, Franco, Vargas, Perón, Salazar, Che, Mao e outras porcarias
consectárias que tentam se diferenciar em um socialismo pró-comunismo e um
socialismo anti-comunista (diferença que, “noves fora”, só Marilena Chauí e seu
ódio à classe média consegue exergar).
Rafael Correa (que se despede hoje, ao lado de seu fiel
escudeiro Tiko-Tiko), Cristina Kirschner, Néstor Kirschner, Maduro, Chávez,
Morales, Ortega, Lula, Duterte, Rousseff, Pútin, Bashar El-Assad, Mohammad
Morsi e essa gente louca de ISIS e do exército Houthis é farinha de um mesmo
saco de onde saiu o produto básico para tirar do forno e servir, no Salão Oval,
essa aberração de cabelos alaranjados chamada Donald Trump.
Seu ápice de idiotice (até agora) deu-se naquele fatídico
decreto que o Poder Judiciário já freou e, aconselhado, Trump desistiu. Dizem
que interlocutores perante a Suprema Corte lhe trouxeram recados para que
desistisse, visando evitar um vexame judicial que poderia fazer com que os
próximos 3 anos e 11 meses de governo o transformassem um morto-vivo roussíffico perambulando pelos jardins da Casa da Branca
(e, desta vez, sem a auto-ajuda de Paulo Coelho em mãos, coisa que só a alta
nata da política yankee tem acesso).
Seu próximo ato de Declaração Universal de Energumenismo
será no tal do Muro – terá ele mesmo que construí-lo, with his bare hands: ou alguém acha que a massa de pedreiros que
atuam nos EUA (peruanos, colombianos, cubanos, brasileiros, nicaraguenses,
venezuelanos, dominicanos, haitianos, panamenhos, paraguaios e... mexicanos, sim, eles!!!) irá mover um
tijolo sequer para por em pé um muro que eles mesmos tenham parentes a cruzá-lo
brevemente? Ou será que o eleitor de Dakota de Norte ou de Montana irá descer
até a fronteira, a cavalo, para construir o muro para separar essa turma do Taco Bell, como se estivéssemos em uma película
de John Ford refilmada por J.J. Abrahams? – A
Saga do Muro (já pensaram??? estrelada por Charlton Heston, o Moisés...).
Deixando essa dúvida do Muro em suspenso (que, apostamos,
não será construído por falta de mão de
obra, forma simples de culpar o desemprego gerado FDR e herdado por Trump),
voltemos ao tema do momento, o decreto anti-imigração.
Uma coisa é fato: todos, sem exceção, reclamaram do decreto,
sem tê-lo lido e, pior, sem ter a menor noção dos efeitos, causas remotas que
incluiram aqueles sete países e consequências a médio prazo (independentemente
do banimento de cidadãos desses países nos EUA) das coisas que vem ocorrendo nesses países especificamente.
Um teste para você, leitor vivo, leitora espertinha: diga de
cabeça quais são os sete países objeto do decreto... dizem até que há leitores
e leitoras que descobriram agora que os “barrados no baile” são “apenas”
sete...
Ah, pegamos você! Todo mundo reclama mas ninguém sabe de
cabeça nem ao menos quais são os sete países. Voi-lá: Síria, Líbia, Irã, Iraque, Somália, Sudão e Iêmen. Ei-los.
Mas a questão não é tão simples, pois o decreto de 27 de
Janeiro de 2017 simplesmente não os cita.
Meramente, em referência
cruzada ao INA (Immigration and Nationality
Act de 1952) diz que “the
immigrant and nonimmigrant entry into the United States of aliens from
countries referred to in section 217(a)(12) of the INA, 8 U.S.C. 1187(a)(12), would be detrimental to the interests of the United States,
and I hereby suspend entry into the United States, as immigrants and
nonimmigrants, of such persons for 90 days from the date of this order (excluding
those foreign nationals traveling on diplomatic visas, North Atlantic Treaty
Organization visas, C-2 visas for travel to the United Nations, and G-1, G-2,
G-3, and G-4 visas)”.*
* - um dado curioso da linguagem adotada pelo decreto é que
a norma atinge “immigrants” e “non-immigrants”, mas não trata de “refugees”. A diferença básica entre um
imigrante e um não imigrantes está na... intenção
de imigrar. Um turista é um non-immigrant,
por exemplo. Um refugiado não se enquadra nem em uma da categoria (pois não é
imigrante) nem em outra (nem é não-imigrante). Há no refugiado a deliberada
“necessidade de remoção”; não há o conceito de “vontade de imigrar”. Pelo
contrário: o refugiado ou asilado tem sempre a esperança de voltar e vive
sempre uma vida provisória na nação que o acolhe. E, dizem, foi com base nessa
imprecisão que Trump recuou. Quando soube que o seu decreto abria brechas para
refugiados, além da chacoalhada que tomaria na Suprema Corte, decidiu
contentar-se com a conveniente medida do Juiz James Robart, que fez-lhe um
favor.
Voltando a norma em si, veja que ao criar exceções, limites
temporais da restrição e recorrer a artigos de outras leis, Trump, the useful idiot cria, na largada, uma
gigantesca confusão jurídica, sobretudo porque a section 217(a)(12) do INA cita
expressamente apenas Síria e Iraque e por meio de uma “linguagem jararaca”
abre-se para "any other country or other area of concern" .
Desnecessário dizer que ao “armar o cu pra pegar caralho”, como dizem por ai
popularmente, Trump teve que emendar esse curioso decreto (que, diga-se de
passagem, duvidamos que até ele tenha lido...) por meio da ajuda da DHS (aquele
mesmo departamento que emprega várias pessoas nos aeroportos vestidas de
uniforme azul operando scanners e
cães farejadores), abreviação para Department
of Homeland Security, que emitiu um fact
sheet esclarecendo esse artigo do decreto trúmpico nestes termos: “For the next 90 days, nearly all travelers, except U.S.
citizens, traveling on passports from Iraq, Syria, Sudan, Iran, Somalia, Libya,
and Yemen will be temporarily suspended from entry to the United States. The
90 day period will allow for proper review and establishment of standards to
prevent terrorist or criminal infiltration by foreign nationals”.
Sem precisar entrar no mérito, podemos convencionar que sob
o ponto de vista técnico (jurídico, apenas) o decreto é de uma peça de
majestosa barbeiragem.
Ele atesta que, sim, temos um idiota cercado por energúmenos
na Casa Branca.
Mas a pior parte não vem do decreto – vem, sim, da
incapacidade de muitos trombeteiros de plantão (e, aqui, os trombeteiros não
são os aliados de Trump, mas a turma que reclama das coisas sem saber do que
está falando) de, propriamente, se informar sobre o que está ocorrendo no entorno desse decreto.
Isso começa quando as pessoas (mais de 95%) não sabe de
cabeça nem quais são os países e muito menos a forma com que são “mencionados”
no decreto. Mais de 98% não sabe que o decreto tinha validade de 90 dias e, o
mais espantoso – pergunte a qualquer brasileiro que se ofende quando um
americano diz que a capital do Brasil é Buenos Aires: declare, de memória, o
nome da capital de ao menos 3 desses 7 países e verás que nem nessa mini-prova
de geografia o trombeteiro passa.
Agora, se você, leitor descocupado, leitora madrugadora,
souber: 1. de cabeça quais são os países do Decreto de Trump; 2. como eles são
“citados” e porque foram escolhidos para figurar nesse decreto (que, como já
dissemos, faz tabula rasa com Arábia
Saudita, Egito, Afeganistão, Paquistão, Jordânia e outros que poderiam chamar a
atenção por motivos semelhantes culturalmente a Irã, Iraque e Iêmen); e 3. por
fim, last but not least, quais são as
sete capitais oficiais e oficiosas dos regimes “citados” no decreto – bem,
então vocês nem devem continuar seguindo nesta matéria. Parem de ler
imediatamente pois vocês com certeza já sabem tudo o que vai ser dito aqui e se
aborrecerão. Take a pie e use melhor
o tempo futuro, pois o pretérito, meus parabéns, já usastes como um Embaixador.
Mas, se você, leitor, leitora, ambos em dúvida, não sabem
uma, duas ou alguma das questões acima, é melhor que siga na leitura, pois
fatalmente vocês não têm informações suficientes não apenas para opinar nessa
questão, mas sobretudo e muito provavelmente, sequer para votar nas eleições de
2018 que ocorrerão aqui no Brasil. Acredite, há semelhanças...
O papel de useful
idiot que Trump se prestou pode ser bem estampado pelo país mais obscuro
dentre os sete citados: Iêmen, ou “República do Iêmen”, em árabe simplesmente Al-Yaman ou Al-Yamaniah. É um país que tem lá seus 5.000 anos idade que não
cabem ser analisados neste artigo. Cobre uma área equivalente ao dobro do
Estado de São Paulo, algo do tamanho mais ou menos do Estado da Bahia ou de
Minas Gerais. O último PIB é mais ou menos equivalente ao rombo da Petrobras:
coisa de US$50 bilhões. Sua economia depende integralmente das reservas de
petréleo, exportadas em sua totalidade e responsáveis por aproximadamente 98%
do PNB e das receitas geradas no Iêmen. As reservas estão em torno de 4 bilhões
de barris de óleo. Sim, essas são as reservas
totais. Para se ter uma noção, o
pré-sal tem algo em torno de 175 bilhões de barris. Isso, estima-se (pela
velocidade de retirada dos últimos 10 anos), tornará o Iêmen no lugar mais
improdutivo do mundo sem um único pingo de óleo para pagar uma das mais altas
taxas de corrupção do mundo, tornando completamente insolvente já a partir de
2025. Qual seja, esse estoque deve durar não menos do que outros dez anos pela
frente.
Não à toa, ostenta a incrível marca de 160º em IDH (o Brasil
está em 75º e a Venezuela em 71º, apenas para se ter algum parâmetro), posto
que o pior país, Níger, ostenta no 188º com um índice de 0.348 em face do 0.498
do Iêmen (Brasil tem o seu consolidado 0.755 e o primeiro colocado, Noruega,
0.944 dentro de possíveis 1.000). Já o índice de percepção da corrupção deixa o
Iêmen em 170º (dentro de um quadro de 176 países analisados) ostentando a marca
invejável de 14/100 pontos (a Dinamarca, país menos corrupto do mundo tem a
marca de 90/100 e o Brasil da Petrobras está 79º com 40/100 empatado com China
e Índia, colocando boa parte dos BRICS como exemplos de corrupção moderna para
todo o mundo).
Voi-lá: sua
capital é Sana’a, retratada no jogo Uncharted
3 e usada por Pasolini para filmar o seu clássico Decameron, de 1970. O bairro da Cidade Antiga de Sana’a, onde ficam
os portais do Iêmen, o Bab-al-Yaman,
é considerado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Apesar de tantas coisas,
pergunta-se, como o Iêmen foi parar nessa “lista do ódio de Trump”? A dúvida
apenas revela que o Iêmem é de fato e com acerto, talvez um dos lugares mais uncharted do planeta e da história.
E neste ponto, é difícil escapar da história e podemos pular
ao menos uns 4980 anos para nos concentrarmos nos 20 últimos, que é quando a
coisa “degringola” de vez para o estado atual.
Durante muito tempo o Iêmen foi um quintal do Império
Otomano. Diga-se, aliás, de passagem, que os sete países do decreto do ódio de
Trump fizeram parte desse Império por séculos (incluindo os países africanos do
decreto, como Somália, Sudão e Líbia). Em 1908, uma espécie de tataravó da
Primavera Árabe, uma tal de Revolução dos Jovens Turcos deu início a tudo. Essa
revoluceta desaguou numa certa dissolução do Império, que anos mais tarde alçou
ao cargo máximo na Turquia um tal de Atatürk, em 1923, que tinha um discurso
secularista, nacionalista e anti-califa que alimentou boa parte da campanha da
recente Primavera Árabe, mesmo sem que citassem uma linha dos discursos de Atatürk.
Na contramão de Atatürk, a turma fundamentalista e pro-califado, que acabou se
escafedendo das imediações de Istambul e foi fincar bandeira na Síria e na
Arábia Saudita.
E o Iêmen com isso?
Saindo o Império de cena, cada um ficou ao seu léu e não
demorou para que os resultados da I Guerra incidissem não apenas sobre os
Balcãs, mas também sobre aquela parcela do mundo que estava, digamos, “sem
dono”. Surge nessa época o Iêmen do Norte. O resto do território foi chamado
criativamente de Iêmen do Sul, embora no mapa ficassem meio que lado-a-lado.
Eram vizinhos, tendo o Iêmen do Norte na porção oeste do atual território
(incluindo a capital Sana’a) e o Iêmen do Sul na porção leste, qual seja, no
“resto do território”. Essa situação bizarra (que nos lembra bem das aulas de
geografia para o vestibular que fomos obrigados a prestar em fins da década de
1980) não tinha muita explicação clara, exceto pelo mais puro e simples ato de abandono por parte dos turcos. A
história do Iêmen aquela altura seria como se o governo brasileiro atendesse à
recomendação do jornalista Diogo Mainardi e passasse a cobrar o cavalo da
Bolívia abandonado o Acre a divisões que o levassem a ser partilhado entre Acre
do Sul (capitalista) e Acre do Norte (comunista). Essa mania estava em voga no
mundo nesses recônditos de miséria: foi assim na Coreia, foi assim no Vietnam,
foi assim no Camboja mas não foi assim na Irlanda!
Coreia, Vietnam, Camboja, Iêmen (e se assim fosse na
devolução do cavalo, possivelmente teria ocorrido o mesmo com o Acre):
ex-colônias improdutivas que vivem de dois produtos ótimos para recônditos
afastados do mundo – ignorância e cargos públicos. Populistas de direta,
atraídos pela ignorância, levaram a porção norte enquanto que os populistas de
esquerda, atraídos pelos cargos públicos e pela corrupção (esta sim, a única
que foi dividida de forma irmanada entre esquerdistas e direitas de
oportunidade), ficaram com o Sul.
A “unificação” veio na década de 1990 e o Iêmen virou um
país só: juntou de novo ignorância, corrupção, populismo, militarismo e cargos
públicos em uma só nação e assim instituiu uma ditadurazinha populista
parecidíssima com o que Trump quer fazer nos EUA. Alguns comunistas ficaram tristes
com a divisão do butim e deram início a um movimento separatista criando
novamente o Iêmen do Sul, país não reconhecido nem por parte de quem os criou.
Mas isso apenas traz mais tempero a uma feijoada árabe-muçulmana que ficou
pronta em fevereiro de 2011 e tomou o nome de Primavera Árabe (na versão iemenita, foi a Revolta do Iêmen).
No período pós-unificação, guerra civil estourada por
movimentos de esquerda, que fizeram coalizões políticas de conveniência com
grupos como Al-Qaeda e os xiitas Houthis, traziam separatismos de coalizão
apenas para azucrinar e bagunçar o poder central, que estava, há 30 anos, nas
mãos da família Saleh, liderada pelo velho Abdullah, que já preparava Ahmed,
seu filho, para herdar essa ditadura de coalizões.
Abdullah Saleh governou o Iêmen assim, digamos, como fez o
PT no Brasil ao longo dos últimos 13 anos – coalizões com pequenos grupos
garantindo a eles um pedaço do butim em troca de “estabilidade política”, que
era gerada e gerida na base do velho “toma lá, dá cá”. Saleh se marketeava como
o artífice dessa estabilidade e pregava que sua ausência poderia levar o país,
que já estava no fundo do poço da economia (desemprego, inflação, corrupção), a
um caos político e bélico sem controle (mágica que só ele sabia realizar).
Tentou fazer-se monarca, uma espécie de Caesar do Iêmen, presidente perpétuo
cuja sucessão seria por ele conduzida e o sucessor, por ele indicado e nomeado.
Tudo por meio de uma emenda constitucional que o declarasse uma espécie de califa secular.
O passo maior que a perna rumo a perenização pelo poder (e
com um discurso em prol do povo) deu a quem já estava de saco cheio dele, o
argumento faltante para tirá-lo.
Ao olharem para o não tão vizinho (mas ex-parceiro de
Império Otomano) Egito e o menos vizinho ainda Tunísia, resolveram os iemenitas
ir para as ruas naquele fevereiro de 2011 e, ao contrário de protestar contra
aumentos de centavos nas tarifas de ônibus, focaram as reclamações em Saleh e
na sua tentativa bizarra de se tornar o Caesar do Iêmen. A esses protestos
agregou-se geral insatisfação pelo modus
operandi de Saleh no governo, identificado como a causa da pobreza geral,
da corrupção exorbitante, do desemprego altíssimo. Em um dia, reuniram em
Sana’a 16 mil manifestantes, sendo 10 mil oriundos dos bancos escolares da
Universidade de Sana’a. A parte curiosa deve-se a outro modus operandi, neste caso, dos manifestantes. Sabe-se que a Primavera
Árabe foi coisa das redes sociais, mas no caso do Iêmen o word of mouth (convocação boca-a-boca) e as convocações fora de
foros eletrônicos públicos (qual seja, o uso do SMS, do email e de outros modos
fechados de convocação) fez alguma diferença em relação à Tunísia, onde o Facebook e vários blogs abertos a toda a comunidade foram usados com maior extensão.
Explica-se assim: o grau de liberdade dos tunisianos e o menor risco de
patrulhamento permitiu-lhes uma divulgação muito parecida com as usadas nos
protestos brasileiros de 2013-2016. Já a possibilidade de patrulhamento pela
ditadura Saleh fez com que as convocações ocorressem pelo mesmo modus operandi do ISIS e do Al-Qaeda: word of mouth combinado com um certo
assédio privado eletrônico (via Inbox,
email, SMS, mensagens instantâneas e assim por diante – nada aberto nem
público).
Enfim, após dias de protesto em rua, incluindo uma
convocação para o “Dia de Fúria”,que ocorreu em 3 de fevereiro de 2011 por
intermédio da convocação de ativistas de esquerda e levou 20 mil pessoas a um
confronto aberto nas ruas de Sana’a, o “nós contra eles” teve Saleh ao centro. Os
partidários de Saleh confrontaram-se com os seus adversários, que dentre eles
contavam com excluídos de esquerda, democratas, membros do Al-Qaeda, xiitas
Houthis e toda a colcha de retalhos de excluídos do regime Saleh. Bem que ele
tentou um “toma lá, dá cá” absoluto, mas inevitavelmente o estado depreciado da
economia deixou muita gente de fora, convidando-os ao antagonismo. Ao fim de
dois ou três meses os protestos passaram a ser quase diários e contar com uma média
de 100 mil pessoas de várias origens e motivações que se uniram contra o “fantasma
da corrupção e do desemprego” encarnado em Saleh, o ditador da hora.
O resultado? Sim, Saleh caiu e essa turma de opositores
(incluindo do “PMDB”de lá) subiu para partilhar o butim. Mais uma vez, não
foram todos que conseguiram meter a mão no pote de mel e muita gente acabou
ficando de fora. Mas a parte interessante é quem
subiu para assumir a sucessão de Saleh.
Neste pormenor, parte das discussões na Primavera Árabe que
ficaram ocultas e subliminares diziam respeito diretamente ao limite a
liberdades que eram clamadas nas ruas: direitos das mulheres, liberdade
religiosa, secularização do Estado, transparência – enfim, tudo aquilo que para
muitos já é assunto de dar sono, lá, ainda, era tema de tirar o sono. O imporante
era unir-se contra o “inimigo comum”, Saleh, ainda que isso implicasse em
promover passeatas junto de black blocs
do ISIS e do Al-Qaeda.
Do outro lado, o ditador Saleh fez igual Dilma Rousseff:
culpou Washington por sua queda e vaticinou o “quanto pior, melhor”. Disse,
várias vezes e com todas as letras, que os EUA estavam por trás de tudo para
poder ficar com as riquezas do Iêmen (sem pensar que um capitalista, antes de
estudar se ter riqueza, faz uma conta básica sobre os custos de acesso a essas
fortunas que só Saleh enxerga).
A Primavera Árabe trouxe várias consequências, muitas todas
ainda mal conhecidas e mal estudadas, dentre elas o chamado Inverno Árabe.
O Inverno Árabe atingiu países como Iêmen, além de Sudão,
Iraque e Síria e, em parte, o Egito, mas não a Tunísia, o Marrocos ou a
Mauritânia, por uma razão comum. Somália,
os EAU e a Arábia Saudita, por outra, também não tiveram Inverno Árabe. Notem
que alguns países com causas comuns constam do decreto do ódio de Trump, outros
não, enquanto que as causas da Somália ainda oscilam entre o grupo em que está
técnicamente inserida e o grupo de que fazem parte Iêmen e Síria. Mas ao fim e
ao cabo, esses grupos partilham a mesma causa de ter tido ou não o Inverno,
muito diferente do grupo da Tunísia.
No grupo de Arábia Saudita, temos uma ditadura monárquica
das mais violentas já vistas, cujos protestos foram abafados sem ter gerado
qualquer efeito político por puro e simples uso da truculência.
Já a truculência não foi suficiente no caso do grupo
envolvendo Iêmen (pois gerou a queda do regime) e não foi a solução apresentada
no caso de Tunínia, onde tivemos mudança de regime seguida de novo governo
democrático e razoavelmente estável, com ausência total de qualquer traço de
truculência por parte do Estado contra os protestantes. A diferença principal
está pois na ausência, em face das Primaveras promovidas nos países
pertencentes ao grupo da Tunísia, de uma certo Inverno Árabe ou de um
abafamento por meio do uso da força bruta. Neste e no caso anterior, a
Primavera Árabe gerou violência, no caso do grupo Tunísia-Marrocos-Mauritânia, não
houve violência: nem prévia, nem posterior nem concomitante. O grupo liderado
pela Arábia usou de uma espécie de “violência a priori” e matou qualquer efeito no ninho. No caso iemenita a
violência foi posterior, assim como se deu na Síria, uma vez que o estado,
mesmo tentando ter lançado mão da violência, não o fez de maneira tão eficaz
quanto Arábia Saudita, por exemplo.
Inverno Árabe, especificamente no contexto das Primaveras
Árabes (caso do Iêmen), significa que os protestos das Primaveras geraram um
estado de caos político com violência generalizada e institucionalização do
terror como método de busca da estabilidade e administração dessa transição que
dura até hoje. Algo muito parecido com o que fez Mao na China pós Chiang.
E a diferença básica que levou uns ao Inverno e outros ao
Verão está justamente na base da sociedade de cada um desses países árabes:
uns, do grupo da Tunísia, possuiam a chamada classe média bem solidificada; outros, como o Iêmen, não.
Essa coisa que tanto ódio gera em Marilena Chauí e seus
seguidores petistas está no centro de todas
as explicações para os Invernos Árabes que se seguiram a certas Primaveras.
A ausência de uma classe média estável no Iêmen abriu
oportunidades para que os vários grupos elevassem seus conflitos tribais a um
nível nacional, muito facilitados pela estabilidade sedimentada na ignorância.
A lei do mais forte imperou e o grupo dos xiitas Houthis ganhou muito espaço na
disputa pelo poder no Iêmen. Como rebeldes e defensores de “tradições”,
inseriram o país na guerra mais sangrenta travada no mundo atualmente (mais
sangrenta, inclusive, do que a guerra na Síria ou nos Morros Cariocas). Por ser
uma terra de posição geográfica privilegiada (acessá-la depende integralmente
de atravessar a península arábica ou navegar pelos “tranquilos” mares da
Somália, onde temos cemitério de navios e piratas nada amistosos ou ainda
tentar aportar via mar da arábia), os grupos ISIS e Al-Qaeda se uniram para
eleger o leste do Iêmen (antigo Iêmen do Sul) como uma espécie de estância de
férias da turma dos turbantes negros. Xiitas Houthis, de outro lado, aliados
com ex-aliados de Saleh brigam contra o sucessor de Saleh, os governistas
representados pelo presidente confirmado Hadi (era um vice de Saleh que foi
confirmado por 99% dos votos em eleição direta confirmatória).
Hadi, nesse período, já renunciou e já chegou a renunciar à
renúncia; terroristas do ISIS em companhia de turma do Al-Qaeda dizem que os
mandatários são eles enquanto os Xiitas Houthis dominam a maior parte do
território e, pelo respectivo lado, fazem também suas declarações de “quem
manda nessa porra somos nós”. Houthis, por outro lado, se entendem bem com o
ISIS, pois bebem da mesma fonte: a Irmandade Muçulmana, uma espécie de TFP
Muçulmana que existe por lá e foi fundada no Egito desde que o Império Otomano
abandonou essa periferia toda (idos das décadas de 1910 e 1920). Esse abandono
levou grupos a uma volta a um passado inexistente de glórias inventadas (coisa
bem populista) e com forte viés nacional-socialista com tintas carregas de
jihadismo e anti-americanismo. Esse grupo chamado Irmandade Muçulmana já foi
considerado grupo terrorista (aliás, muitos ainda o consideram), mas fato é que
na Primavera Árabe egípcia a IM teve papel central. Sem muito se importar com
as vozes da IM que pregavam coisas bem estranhas e impunham muitos recuos em
liberdades parcamente conquistadas, a ideia do inimigo comum Mubarak que
precisava ser derrubado no Egito acabou por dar mais voz à IM que o
simplesmente imaginável. No fim da Primavera Árabe egípcia, a IM tornou-se um
partido que, curiosamente, elegeu o sucessor de Mubarak: Muhammad Morsi, do PLJ
(Partido Liberdade e Justiça, a versão partidária da IM).
A IM ainda deu subsídios e doutrinas para outros grupos como
os Houthis iemenitas e, bingo, o ISIS, atualmente presente no Sudão, Iêmen,
Iraque e Síria. ISIS forma um estado autodeclarado califado e faz um discurso neo-anti-Atatürk
com voltas a um passado que nunca existiu consolidando o jihadismo e o terror
como ferramenta política.
Morsi caiu em 2013 e a IM e o PLJ voltaram à margem por mãos
da Suprema Corte Egípcia, mas o estrago já estava feito, sobretudo longe da
jurisdição egípcia: Síria, Iêmen, Iraque e Somália já bebiam do fel amargo
espalhado pela doutrina jihadista da Irmandade Muçulmana.
Pois é – de fato, o Iêmen não é um lugar fácil de entender e
de sua complexidade podemos intuir que não é uma terra com flores que se
cheirem. Isso não dá razão a Trump, de modo algum.
O torna, de fato, um useful
idiot.
Faz-nos pensar no mérito dessa decisão, a respeito de um
país ser obrigado ou não a receber pessoas que portem documentos emitidos por
um governo difícil de compreender e abarrotado de problemas de legitimidade.
É fato que o Iêmen, ao lado da Coreia do Norte, é um dos
países mais fechados do mundo. Seus cidadãos não são permitidos a sair do país
e, entre nós, nem tem por onde (basta olhar o mapa da região e ver que
literalmente, não tem para onde correr).
Se os “cidadãos de bem” estão todos presos nas mãos de gente
louca, o que me garante, aqui no Brasil, que a pessoa oriunda de um país como
esse, portando um documento emitido pelas “autoridades desse país”, entra por
eles “autorizada” e sem alguma “missão de governo” que nós, daqui, não conseguimos
controlar?
É muito, muito, muito complicado o todo que envolvem os
conflitos nesses países citados no decreto e, como dito, tudo o que os separa
da Tunísia e a inexistência de uma classe
média que Chauí tanto odeia.
Essa classe média freou a violência como consequencia dos
protestos primaveris e onde ela não estava presente, imperou a violência pois
na derrubada do inimigo comum, libertários e ditadores se uniram sobrando,
sempre para estes, pedaço maior do butim.
Macri fez o mesmo que Trump na Argentina e contra outras
nações e ninguém esperneou tanto quanto em relação a Trump.
O decreto de Trump não resolve o problema no Iêmen, mas
deveria ao menos torná-lo evidente, o que também não está acontecendo, seja por
culpa da imprensa, seja por culpa dos reclamões de plantão.
Seguimos a nossa Primavera Brazuca com características muito
parecidas – achamos o inimigo comum, o culpado pelo desemprego, pela corrupção,
pelo autoritarismo burocrático de cunho stalinista-maoista e a derrubamos. Mas
na derrubada, abrimos espaço para Bolsonaro e Ciro Gomes, que fatalmente
disputarão um segundo turno em breve no Brasil. São os nossos Morsis e Hadis de
plantão.
Acreditamos que nossa classe média talvez seja tão
qualificada quanto a da Tunísia, mas há ainda aquela dormência no corpo
político gerada pelo peso da barriga (que gera certo formigamento nas nádegas)
do MDB.
Trocamos aqui um bando de amadores na arte do roubo por
verdadeiros profissionais, os únicos e derradores criadores do “toma lá, dá cá”
e rumamos para o nosso Inverno Brazuca a passos de tartarugas do Projeto TAMAR.
Talvez não nos tornemos um Iêmen por faltar em nós uma
Irmandade Muçulmana que alimente o PCC, o CV, o ADA, o FDN, o TC e as demais
siglas do terrorismo brazuca que ainda carece de um “motivo político” para o
seu respectivo terrorismo.
A esquerda tem se esforçado em dá-lo, vitimizando a turma
das rebeliões como se o Carandiru tivesse sido tão ontem quanto a queda de
Rousseff. Doutra banda, grande passo andou dando o STF ao criar um mecanismo de
financiamento público para essa turma: as condições degradantes do Estado serão
ótima fonte de renda (estatal) para esse grupo privado de ações públicas e,
agora, definitivamente de cunho político, dado de bandeja pelo STF.
Sim, meus senhores, o Iêmen é quase aqui e o Brasil está
quase lá.
A propósito, a capital da Somália é Mogadíscio, da Síria é
Damasco, do Iraque é Bagdad, do Irã é Teerã, da Líbia é Trípoli, do Sudão é
Karthum e do Iêmen pode ser Sana’a, Aden, Al-Mukala ou Tarim, dependendo de
quem você acreditar (se no ISIS, no Al-Qaeda, nos Houthis, na turma de Hadi) –
se der muitos ouvidos aos críticos que não leram este texto, pode até ser que
você acredite que a capital do Iêmen é... Brasília!