por Prof. Pinto Cançado
Muitas pessoas vêm discutindo aqui (menos, porque não aceitamos comentários em nosso puro hebdomadário) e acolá (bem mais, enxovalhado pelo abuso do desconhecimento geral da língua e do momento certo de se calar).
Parte dessa discussão tem polarizado o país nas duas periferias da lógica: "é golpe", "não é golpe".
O culto editor deste hebdomadário me trouxe ao parquet da notícia e me pediu que respondesse, sob o ângulo exclusivo da língua - o que é golpe?
Quid colpus?
Pois bem: recorreram ao Houaiss para associar "golpe" a "estratagema", mas eu, professor Cançado, sempre recomendo - vejam no CALDAS.
E o Caldas é longo em sua definição e como todos os outros, começa com aquela ladainha "pancada com instrumento...". Tudo, em termos de golpe, começa de repente, com a pancada.
A "pancada", que já foi heróica para uns e que "se sentiu no peito bater" para outros é, no sentido de golpe, no mais das vezes como lembra o CALDAS, "acontecimento funesto inesperado".
Caldas, o genial, vai sempre nesse sentido do "de repente" e fala da "disposição decisiva que se toma em qualquer negócio". Fala também de "um rasgo", "um lance".
Fala também, ao entrar no mérito do que seria um golpe de mestre sobre "combinações engenhosas numa obra artística em que se conhece a mão de um grande mestre".
Poder-se-ia (usa-la-emos: voltou à moda) imaginar que Caldas estaria encetando que os golpes decorrem de processos; mas não: o sentido locativo está sempre presente em seus exemplos "de chofre, repentinamente". Não há nada processual em um golpe.
Há golpe de morte, o golpe de preto, o golpe de mar (este o prefeito do Rio sabe explicar bem do que se trata), o golpe de sangue, o golpe de vento, o golpe de ar... Todos repentinos, nenhum esperado.
Há o popular "golpe de vista" - quem já foi goleiro sabe bem o que é isso e quão traiçoeiro ele pode ser, mais até do que o "morrinho artilheiro".
Ainda na popularidade esportiva, há os golpes que os artistas marciais e pugilistas usam: se não "entrar", não é golpe e para "entrar", tem que surpreender, seja de direita, seja de esquerda.
Na culinária, é a pequena porção, "o golpe de azeite" tal qual a "pitada de sal"; nas ruas, é o truque, o "roubo", a "falcatrua", a "treta", a "manobra traiçoeira".
E aqui, no finzinho da explicação, voltamos ao estratagema e à terceira via recentemente proposta, para uma nova definição de golpe de estado que Caldas diz ser "um ato violento a que um governo recorre para sustentar o poder ou evitar alguma tentativa contra o estado; trama pela qual um ou mais indivíduos por meios violentos derribam o governo estabelecido para constituírem um novo" e que a terceira via, lançando mão do conceito de "estratagema", diz existir portanto um certo "golpe gramático" ou "golpe vocabular".
É sempre mais fácil culpar a língua, justo ela, que não tem culpa de nada e só está ai para nos ajudar. Seria como o rego culpar a cueca pela freada ocorrida.
Mas voltando à língua, para mim, Pinto Cançado, "golpe vocabular" ou "golpe de Estado no sentido gramático" e NADA, ouso dizer que NADA vale mais.
Mas eu acredito que NADA vem do NADA e TUDO tem uma razão, até aquilo que parecendo ALGO, se equivale a NADA.
Se os dicionários dizem que para a semântica de golpe você precisa de dois elementos, a saber, a surpresa e a violência, vamos admitir que mesmo ante a ausência desses dois elementos seria possível uma emenda aos dicionários, supondo que poderíamos incluir um tipo de golpe que vem de um processo, naquele sentido de golpe empregado nas ruas: truque, roubo, falcatrua, treta, manobra traiçoeira, enfim, estratagema. Algo que vem de um passo a passo, um vai e vem, uma oferta e uma aceitação, um convite e um acochambramento, uma reclamação e uma contestação.
Sim, vamos então trabalhar com o conceito processual de golpe, no sentido de processo de estelionato, algo como um processo para enganar.
Se é um processo, ora então, lá teve em algum momento o seu início. Se é truque, roubo, falcatrua, treta, manobra traiçoeira, enfim, estratagema, além de um início, há um autor. Ou uma autora, que num certo dia, numa certa hora, começou a falar das suas...
Com autoria e marco temporal, precisamos ainda de um discurso, de um "papo furado", de um "xaveco", de uma "conversa fiada", de uma "conversa para boi dormir". Essa conversa iniciada por uma certa pessoa num determinado momento pode ser obra de sua única e exclusiva genialidade pensante ou pode ainda ser resultado de um estratagema discursivo empreendido por várias pessoas, por um grupo, ou ainda uma quadrilha (no sentido de "pequena quadra de autores").
Assim, nesse sentido de golpe vocabular, temos que concordar com os mestres da Terza Via e por mais que me doa no coração culpar a língua por ato de ignomínia dos homens, parece, realmente, dada a autoria certa, o marco temporal preciso e o conteúdo discursivo enganoso, que temos sim um golpe vocabular.
Juridicamente, podemos dizer que tudo o que está acontecendo no Brasil não é golpe, pois segue as regras, o "livrinho", não é repentino, não é violento, há um processo, há direito de defesa, etc, etc, etc... Mas, pensando bem, há um golpe vocabular com autoria certa, marco temporal bem definido em 2014 e um estratagema discursivo baseado em mentiras, qual seja, um "papo furado", um "xaveco", uma "conversa fiada", uma "conversa para boi dormir" - ergo, aquilo que você diz só para obter a confiança de seus interlocutores e, uma vez dada a confiança, seguem atos contraditórios e... repentinos, não esperados e traidores dessa confiança obtida às custas do discurso para boi dormir.
E sendo justo e honesto com o sentido verdadeiramente vocabular, gramatical, etimológico (colpus, kolaptw... essas coisas em outras línguas que significam nada mais, nada menos do que "sentar a porrada sem avisar") e teológico do termo golpe, ajustado ao seu contexto popular e ao uso das ruas naquela noção de estratagema, podemos sim, admitir que houve um golpe.
Mas nesse último e específico caso, a existência desse golpe, desse processo com ardis, estratagemas, proveitos indevidos, tramas espúrias, há documentos, grampos, gravações, degravações, depoimentos e dados de sobra para identificarmos quando esse golpe verdadeiramente começou.
Não culpo a gramática pelo que vivemos, embora, a verdadeira culpada, de fato, seja ela mesma, a gramática dos discursos que são.... golpes.