terça-feira, 25 de julho de 2017

Ensino Público Não-Estatal

por Dom Fernandes III

 Vez por outra, nossa pauta editorial é interrompida, mas sempre por boas e, frequentemente, por ótimas razões.

Desta vez atalhou-nos discussão sobre o papel do Ensino (público) na sociedade e a quem caberia promovê-lo, geri-lo e administrá-lo.

Defensores do liberalismo clássico e do Estado mínimo regularmente flertam com ideias de Bem Estar Social, uma tendência que não é propriamente liberal e nem tampouco conservadora, mas seduz pelo potencial que já nos produziu em um universo "blue pill".

Estamos mais do que acostumados a considerar que o Estado mínimo é uma saída interessante pela sedução que nos produz o ideário do Estado de Bem Estar Social, que, recentemente vem alimentado boa parte da esquerda progressista a um fenômeno que vem sendo chamado de ordocapitalismo.

A linha editorial deste hebdo é contrária a essa tendência: é abertamente anarcocapitalista ao modo friedmaniano.

Por isso não nos constrange retirar da pauta estatal todo e qualquer tema que não seja relacionado (por ora) a segurança nacional, nos mesmos termos em que sustentou David Director Friedman em seu The Machinery of Freedom.

Sempre nos ocorreu como óbvia a ideia de que não cabe ao Estado intervir, promover, controlar, enfim, sequer chegar perto de temas como educação, saúde, infraestrutura, saneamento básico, pesquisa, transporte público, logística (linhas férreas, portos, aeroportos) e por ai vai.

No ordocapitalismo, uma espécie de "nova esquerda" vem surgindo alimentando a ideia de que a presença do Estado nesses temas é essencial.

E a verdade é que essa presença é essencial apenas e tão somente para quem vem se servindo do Estado. Em países em que o Estado serve as pessoas e não o contrário, o conceito de público e estatal são bastante diferentes.

O fenômeno e as preocupações não são locais e nem exclusividade do Brasil. Na matriz do tema em Machinery of Freedom o próprio Friedman discute profundamente o sistema que ele bem conhece, o dos EUA.

O sistema japonês é também digno de observação e o debate sobre os rumos das escolas nos dá inúmeros indicativos do que Friedman alertou décadas atrás. Não nos acudimos do que vinha ocorrendo e hoje temos um sistema de ensino completamente apodrecido no Brasil: situação que debitamos 100% ao fenômeno da presença estatal absoluta e da ausência total da sociedade nos rumos da educação.

A sociedade entregou seus filhos para o Estado cuidar e hoje colhe resultados doloridos e, o que espanta, insiste em paliativos como "escola sem partido" ou em ladainhas ordocapitalistas de que o ensino público era bom na época da minha avó e hoje não é mais.

Veja-se a USP: a deterioração demorou muito mais que no ensino básico, mas foi mais eficaz, efetiva e destrutiva. O estado das coisas na USP hoje em dia a torna um zumbi do ensino internacional.

Isso tudo ocorreu historicamente com o crescimento da presença do Estado no sistema de ensino.

Essa presença, diga-se de passagem, se torna incontestável a partir do fim da II Guerra.

Antes disso, o ensino Estatal era representado por pouquíssimas instituições como o Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, o Caetano de Campos em São Paulo e as inúmeras escolas militares no Brasil.

Com o advento da USP durante a ditadura Vargas e a criação de um sistema varguista de ensino, dividido por departamentos e por hierarquias moldadas em sistemas soviéticos de ensino, montamos o nosso modelo e até hoje convivemos com ele.

Nesse sistema o Estado "deita o couro" e não tem pudores de "problematizar" desde as ervilhas de Mendel até uma fórmula algébrica simples, passando pela opressão na equação de Torricelli e sobre as inconsistências históricas de Parmênides ou Galileu (visto como uma vítima das elites e por ai vai...).

Já vi e ouvi, do Infantil I a teses de livre-docência, barbaridades incríveis pagas com imposto e com recursos públicos. Trens da alegria intermináveis pela Europa, sem um mínimo de resultado ou seriedade. Essa é a verdadeira face do ensino estatal brasileiro que muitos acham que a "escola sem partido" é a panaceia para curar um tumor central instalado no ensino brasileiro - o Estado.

Temos a visão turvada hoje de que sem o Estado não há vida inteligente no universo da educação, muito porque ao pensar nesse universo, pensamos nas Uninoves e nos esquecemos da FGV, do Ibmec, da Santa Casa, do Einstein e do Insper.

E o ponto não é ainda esse.

Se recuarmos para o período anterior à implementação do ensino departamental varguista, vamos notar que o Ensino e a Educação (que são coisas diferentes) sempre existiram de forma independente dos Estados.

Mais: vamos notar que na origem do conceito de corporation, Lord Kent em 1826 ou até mesmo George Caines em 1609 nos ensinarão que há uma organização social chamada university ou os colleges.

Nos EUA os colleges mais famosos são anteriores à própria existência da Nação Americana.

No Brasil item: nossa história de povoamento começa com um certo... Pátio do Colégio.

Recuemos mais (como fez Lord Kent, até os tempos "imemoriais"): a própria noção de universidade é anterior a de Estado - as primeiras universidades europeias são do Século XIII e há universidades inglesas e escocesas que remontam ao Século VIII.

O modelo do Século XIII foi uma revolução, iniciada em Bolonha, uma das universidades mais antigas do mundo e seguia lá o conceito de "público" não estatal: a "coroa", os "barões" ou o que quer que seja não tinham qualquer ingerência no "funding" dessas escolas. O ensino passa a ser "público" pois não era mais "privado", qual seja, os professores não iam mais a Casa dos alunos para lhes lecionar (hoje só os professores de música mantém o esquema vetusto). Tudo passava a ser administrado em um centro de estudos unificado onde os filhos eram entregues para se "formarem".

Esse modelo foi revolucionário pois sendo exceção, passa a ser regra, passa a universalizar-se (dai o nome..., universidade).

A universalização do ensino, tornando-o público (mas jamais estatal) foi o ideal ocidental que nos trouxe até os dias atuais. E sempre funcionou bem.

Os fundadores desse modelo foram os gregos.

O Lyceum de Sócrates (herdado posteriormente por Platão) e a Academia de Aristóteles (moldada no Lyceum) são exemplos ideais desse modelo público não-estatal.

A Educação e o Ensino, desde Sócrates, passando por Comênio e chegando no curioso autodidatismo de Machado de Assis sempre funcionou de maneira espetacular em distância absoluta do Estado, que surge na história bem depois e se presta a papéis, no pós-Guerra, que desviam sua função hobbesiana de instrumento de monopólio de solução de conflitos e, sobretudo, de monopólio de violência legal.

Muitos dirão entretanto que o acesso aos mais pobres desse ensino universal e universalizado só é possível se o Estado cuidar disso para nós: e sabemos, essa ideia é tão falsa quanto uma nota de 3 dolares.

A noção hipnótica de que ao pagarmos imposto temos direito a um ensino público e gratuito de qualidade se esvai na primeira aula de matemática dada por um professor da rede pública concursado e escolhido pelos padrões exigidos por um estado contaminado por ideologias de partido e um sistema de corrupção tão violento quanto o visto na Petrobras.

Essa corrupção e esse desassombro todo aprende-se na escola, na universidade: exatamente naquele lugar em que professores da rede pública acessam cargos que cidadãos normais nem chegam perto.

São as escolas estatais que ensinam nossos filhos a relativizar o mal da corrupção e a desprezar a meritocracia para privilegiar quotas ou percentuais. Elas ensinam pelo exemplo que a prática do toma-lá-dá-cá é o que os fará cidadãos de sucesso - formas enviesadas de "ajuda ao próximo" travestidas em negociações de "vagas" (pelos alunos) e cargos (pelos docentes).

Recente escândalo envolvendo os gastos com ProUni e com FIES são a outra face de uma moeda de provável argumento de saída pela direta ou por meio do ensino exclusivamente privado: acesso esse que sem a mão do Estado, parece ser impossível, o que nos torna lenientes a tolerar corrupção e descalabro em troca do "bem maior", o do ensino público, universal, gratuito e de suposta qualidade para todos.

No meio do debate nos acomodamos, mais uma vez, com o nosso "vício de insistir nessa saudade que sentimos" desse Estado tão canalha e tão cafajeste e tão apaixonante ao mesmo tempo.

Justamente porque o imposto a ser pago já está ali, o ensino já está nas mãos do Estado e assim por diante...

Mas e se...? E se..., de repente, imaginamos, como numa Utopia, que o Estado morre, tal qual o Deus de Nietzche? Morreria com ele o ensino? Morreria com ele a educação?

E os pobres?

Esquecemos de pensar no conceito próprio de Estado, de tributo (o "funding" de tudo), de crédito, de seguro.

Pagamos ao Estado para que ele faça por nós. Mas e se pagarmos a uma seguradora, da mesma forma que fazemos com o conceito de "seguro saúde"? Sabemos que o "uso" do ensino se dá de maneira contínua e o da saúde não... mas, ao contrário da saúde o "uso" do ensino é calculável e limitado no tempo. E se, ao não termos recursos, empenhemos nosso futuro a quem nos ensinou (bolsa de estudos, crédito estudantil amplo, irrestrito e com juros baratos e subsidiados)? Resolveria para os pobres ou pessoas de baixa renda que devem se educar? E se dentre os "fringe benefits" de um emprego, além de plano de saúde os funcionários de empresas possam gozar de "bolsas de estudo" para seus filhos?

E se a educação nacional ficar restrita, como sempre foi ao longo de 5000 anos de história, ao ensino pelas escolas militares?

As escolas estão na origem da sociedade - não estão, porém, na origem do Estado (como fica claro no recente trabalho de Francis Fukuyama sobre as "Origens da Política").

Entregá-las aos Estados foi o grande e fundamental erro do qual não conseguimos sair, nem mesmo quando escolas fazem algo que, mais do que um paradoxo, é um oxímoro: entram em greve.

A cada greve reclamamos e esperamos a "paralização" e o "Fora Sei lá o Que" se esvair no ar para iniciarmos as reposições nas férias...

E assim caminha a escola estatal que, mais do que sem partidos, é, pior, de todos os partidos sem nunca mais ter sido, simplesmente, universal.