domingo, 15 de janeiro de 2017

Uma máquina de necedades

Caderno de Domingo
por Dionísio Crátino

O Brasil é definitivamente uma terra de vacilões.

Vacilão, na linguagem popular, é aquele sujeito pretensioso que, ao imaginar-se em estado de louvor que espraia contaminação contemplativa-admirativa entre seus ouvintes e espectadores, nada mais faz do que cometer tolices.

Acha-se.

Esse traço da característica brasileira foi em grande parte formado, forjado, transformado e consolidado em nossa MPB, em especial no samba.

Sim: o samba é o grande responsável em tornar-nos um povo de "malandros-agulha" (aquele que se presta quando entra na linha ou leva o fio no buraco).

O samba foi festejado ano passado - fez 100 anos; aplaudiram Donga, pelo telefone.

Mas convenhamos: desde então, temos nos tornado um dos povos mais hábeis do mundo em imprudências. Há ainda quem diga que sofremos de "síndrome de vira-lata", mas, fato, essa síndrome apenas confirma o nosso vaticínio de sair por ai inventando estultices como aquela famosa "Deus é Brasileiro".

E me parece, tudo isso, se não começou no samba, com ele se formou (no sentido que os marxistas adoram), se consolidou e se fez como traço de nossa persona pública.

Não - não vou aqui dizer que o trio Chico-Caetano-Gil é formado na verdade por 3 chatos de crocs*, nem vou aqui abrir o Opróbio da Música Brasileira, que começa com a lambada da década de 1990, passa pelo Axé, analisa o sertanejo (universitário e analfabeto), o funk carioca, os irmãos Camello e tudo mais que se faz com 3 notas ou menos e 3 vogais no refrão (ou menos, oscilando entre "ô-ô-ô-ô-ô-ô", "i-ê, i-ê, i-ê, i-ê, i-ê, i-ê, i-ê, i-ê, i-ê, i-ê"), desaguando nos MCs de Youtube e em tudo mais que visita o Domingão do Faustão. Não vamos perder tempo isso. Já sabemos. Até quem ouve sabe. Os próprios artistas o sabem.

                                               * chato de crocs - versão pós-moderna do antigo "chato de galocha"

Eu quero falar do samba. Da origem de tudo isso que nos atormenta hoje: e não adianta querer separar o "joio do trigo" porque neste país celíaco, o samba é a fonte da juventude tanto dos intelectuais de plantão e dos chatos de crocs, quanto dos populares e da turma das vogais e do pancadão. Todos louvam o samba. O samba é o "amigo gente boa" de todos, é a unanimidade brasileira de que não pode falar mal.

Aquele mesmo estilo musical que pelo telefone já começou a cunhar essa mania de ser do brasileiro: somos abençoados, somos bons em tudo, o resto dane-se e quem não concorda é porque tem inveja do brasileiro.

O samba construiu essa imagem de "auto-estima" pré-adolescente no brasileiro em que só o brasileiro pode falar mal do brasileiro (desde que goste de samba) e se um "gringo" vem falar mal do Brasil.... ahhh, desanca-se o gringo até o último de seus rastros, seja ele uma espécie de parente de nossa miséria musical (como no caso da tal da Azealia Banks), seja ele o Homer Simpson, seja ele o grande Sly (para os íntimos, Silvester Stallone), seja ele o Maradona, seja ele o Che Guevara, fazendo piada sobre os "milagres brasileiros" (este, na verdade, recebeu a complacência dos jornalistas de esquerda por isso e a reprovação dos demais, mas não por isso).

E essa "autoimagem" arrogante de si mesmo, pelo telefone, começou assim:
Ai, ai, ai,
Aí está o canto ideal,
triunfal,
Ai, ai, ai,
Viva o nosso Carnaval sem rival
Aquela roda de macumba que deu origem ao samba já lançava a fórmula infalível: 3 notas, 2 vogais e uma simples frase para representar um sentimento de "somos f... pra caral...".

Ary Barroso fez a parte dele:
Isto aqui ô ô,
É um pouquinho de Brasil, iá iá
Deste Brasil que canta e é feliz,
Feliz, feliz
É também um pouco de uma raça,
Que não tem medo de fumaça ai, ai,
E não se entrega não 

Novamente: 3 notas, 3 vogais e... somos demais!!!

Benjor deixa a fórmula mais complexa:
Moro num país tropical
Abençoado por Deus
E bonito por natureza
(Mas que beleza)
Em fevereiro
(Em fevereiro), tem carnaval
(Tem carnaval,)
Tenho um fusca e um violão
Sou Flamengo e tenho uma nega chamada teresa 
Sambaby, sambaby,
Sou um menino de mentalidade mediana(pois é)
Mas assim mesmo, feliz da vida
Pois eu não devo nada a ninguem 


Temos mais de 3 notas (4, se minha conta não estiver muito equivocada), vogais entremeadas por consoantes e uma raison-d'etre para o "somos foda pra caralho" (#prontofalei): o país é abençoado por Deus (como se os outros não o fossem), "bonito por natureza" (sem precisar fazer esforço nem deixar ao menos essa natureza livre de lixo e fezes), tem fusca, tem violão (de péssima qualidade, que explica em parte porque os músicos são tão ruins), tem Flamengo e, mesmo sendo um imbecil (desculpe, "mentalidade mediana") sou feliz e (digo) que não devo nada a ninguém (por favor, me comprove com o seu extrato de banco, SERASA, declaração de IR e cadastro positivo que essa parte realmente está tudo bem).

A swingueira Fernanda Abreu também oferece a sua quota de contribuição na sedimentação dessa imagem do "somos foda pra caralho":
Vamo lá rapaziada
Todo mundo dançando
Vamo lá rapaziada
Todo mundo pulando
Vamo lá rapaziada
Todo mundo dançando
Dançando sem parar
O brasileiro é do suingue
O brasileiro é do baile
O brasileiro é de festa
O brasileiro tem carnaval no sangue
Tem carnaval no sangue
Eu digo
Deixa solta essa bundinha
Deixa solto esse quadril e grita
Brasil, Brasil

Brasil é o país do suingue

Apesar de sermos todos comunistas e defensores do operariado, do trabalhador, do trabalho, ninguém faz propaganda sambolística dizendo que "O brasileiro é do trabalho". Porque, na verdade, com tanta riqueza, oras, o brasileiro nem precisa trabalhar. Na realidade, nem deve trabalhar para poder aproveitar tanta coisa maravilhosa e tanta natureza divina. Seria, literalmente um pecado (de ingratidão) com Deus, que abençoou a terra e enfiou tudo o que é bonito por aqui, não separar ao menos umas 6 horas por dia para contemplar isso tudo, dançar, beber, louvar... enfim: ser brasileiro é um ato religioso diário de gratidão pelas belezas e riquezas.

Imaginem se alguém disser: não, as praias não são tão bonitas assim. Aliás, o litoral é bem regular, mediano, digamos, assim como a mentalidade do menino de Ben Jor. De fato, os EUA têm praias infinitamente mais belas do que as nossas. Austrália e Nova Zelândia nem se fale; Indonésia, Caribe, Colômbia, Venezuela, África do Sul.... Até o Japão tem praias mais bonitas que o Brasil enfim. Pegue qualquer ranking de praias bonitas e ache ao menos 3 brasileiras entre as 10 mais belas. A foto abaixo é de uma praia em Okinawa, que fica no Japão. Chama-se FuruZamami, que fica na Ilha de Zamami, que forma o arquipélago sul de Okinawa:



Continuem imaginando alguém dizendo: nossa natureza é vulgar e pobre, não tem nada de excepcional e há países com natureza bem mais rica que a brasileira (seja sob o aspecto da apreciação financeira dos recursos disponíveis, seja sobre o ponto de vista da diversidade), incluindo aqui neste quesito os EUA, a China, a Rússia, o Chile, o Haiti, o Congo, a Síria, o Líbano, Omã e por ai vai... Nossa riqueza é achar que somos ricos por natureza, isso sim.

E em relação a essa coisa da felicidade e da tristeza do brasileiro, ah... ai sim, temos um consenso: o brasileiro é o povo que mais ri e mais chora no mundo. Chora quando ganha, chora quando perde, chora quando vê alguém chorando, chora quando vê alguém rindo, ri quando ganha, quando perde, quando vê alguém chorando, quando vê alguém rindo; ri por nada, chora de tudo; chora por nada, ri de qualquer coisa. Resumindo, agimos como idiotas, como palhaços, com a facilidade que nem o Deputado Tiririca, profissional nessa arte do rir e chorar, é capaz de sintetizar.

Não temos nada demais. Somos um país comum, ordinário, "mediano", de "mentalidades medianas". Não somos ruins, mas também não somos bons. Somos um país "meia-boca" (em todos os sentidos), povoado de gente arrogante e mal organizada, que aprendeu com o samba a ser preguiça e vulgar. Isso o samba esconde, ou pinta com outras cores, com as cores da maquiagem do arlequim de ano todo.

Por isso o samba mente para nós. Nos dá um espelho falso, uma espécie de balança adulterada que esconde o quanto estamos abaixo do peso de quanto valemos de verdade.

O samba só foi bom e valeu alguma coisa quando não foi feito no Brasil (fisicamente, espiritualmente ou ambos): "diretamente daqui dos estúdios em Milão", como dizia Vinícius para Toquinho (logo depois das tardes em uma banheira no Uruguai), ou quando Tom esteve em Nova Iorque fazendo das suas e dizendo que Nova Iorque "era bom pra caralho, mas era uma merda" e "o Rio era uma merda, mas bom pra caralho", quando João Gilberto espantou o Carnegie Hall, quando Baden Powell cantou para a Rainha ou colocou queixos abaixo no Teatro Odeon em Paris, ou ainda quando a "Pequena Notável" (que nem brasileira era) colocou bananas entre as virtudes do samba entre Hollywood, Las Vegas e Broadway. Enfim, o samba só prestou quando foi jazz. No momento em que abandonou o jazz e voltou a ser samba, coincidentemente voltou ao seu estado de natureza de "mentalidade mediana" de que certificou Ben Jor e que se encontra hoje, como diria Daniella Mercury, "ladeira abaixo" (sei que ela mandou subir, mas, quem sobe essa ladeira um dia acaba descendo, como estamos hoje desde que o samba abandonou o jazz que lhe deu alguma dignidade e sentido).

Esse jeito de olhar o Brasil, que fez 100 anos recentemente, tem atrapalhado bastante o próprio Brasil. Atrapalhou até a permanência do próprio jazz no samba, que não resistiu à sua característica vadia e "mediana".

Mandar o samba pra puta que o pariu naquele terreiro de macumba de onde ele veio não é algo tão fácil. Mas bastaria que o Brasil passasse a ouvir o samba da mesma forma que o samba houve o Brasil.