terça-feira, 26 de abril de 2016

Crime de (falta de) responsabilidade

Caderno de Legislação
por Clóvis Hauser (estagiário com OAB!!!)

Em meio a pedidos e questionamentos sobre o que é crime de responsabilidade, fiquei com a dúvida (típica de estagiário) se a nossa legislação teria, por um acaso, algum tipo penal que punisse um mandatário de cargo representativo pela completa falta de noção.

E, de fato, vejam que estranho, não há.

Hoje a Presidanta é processada e investigada por ter cometido "crime de responsabilidade". Dizem que as tais "pedaladas" e os "decretos marotos" tipificariam esse crime, que, lembro, não se confundem com crime comum.

Essa confusão, inclusive, permite que estudantes de outras casas do campus saiam dizendo, "ah, mas ela não roubou, não tem conta na Suíça nem offshore no Panamá, então...".

Bem, então pode parar.

Porque não é isso que jogaram no colo da Presidanta.

Essas coisas de pixuleko, conta aqui, conta acolá, um din-din no colchão, são crimes comuns.

E não são chamados de "comuns" porque todos no seu entorno praticam. São assim chamados de "comuns" porque a lei e a doutrina quiseram chamá-los assim. Poderiam ser chamados de "crimes normais", "crimes do Código", "crimes de gente burra", "crimes engraçados"... mas resolveram chamar de "crimes comuns".

Para que não façamos confusão com o nome que deram a essa categoria de crimes e ao conceito aureliano de "comum" ("o que é considerado geral, habitual, normal") vamos chamar os "crimes comuns" de "Crimes Tipo 1" e os "Crimes de Responsabilidade" de "Crimes Tipo 2".

Há ainda os crimes de legislações especiais, como a chamada "Lei de Segurança Nacional". A esses, vamos chamar de "Crimes Tipo 3".

Pois bem, se todos concordamos que até agora não há provas de que a Presidanta praticou "Crimes Tipo 1", é bem mais difícil afirmar, de acordo com a doutrina e a jurisprudência que eu li (nesse caso, só há o caso Collor e o caso Nixon em esfera de jurisprudência comparada) que ela não praticou "Crimes Tipo 2".

Vamos lá considerar que "pedaladas" ou "decretos marotos", como querem alguns, não são fatos que se encaixam nos tipos descritos nos "Crimes Tipo 2". Ainda assim, tem uma lista de "Crimes Tipo 2" que, mais cedo ou mais tarde, a palmatória vai cantar.

Vejamos no art. 5º. O item 1 "entreter, direta ou indiretamente, com governo estrangeiro, provocando-o a cometer hostilidade contra a República" tem lá seus rastros recentes nesses bate-papos pra lá de estranhos com Evo Morales, Rafael Correa, Nicolás "Girafales" Maduro e essa turma simpática de nações muy amigas. Ou será que ao falar de "hostilidades", a língua fica isenta de cometer "atos hostis"? Não sei..., não sei.

No item 6 tem algo bem singelo escrito lá: "celebrar ajustes que comprometam a dignidade da nação". Assim, um bate papo estranho com o Professor Girafales da Venezuela pode cair tanto no item 1 quanto no item 6. Ou será que as abobrinhas de alguém tão néscio não poderia compremeter a dignidade da nação, pela indignidade de seu professor? Bela dúvida...

Tem também o art. 6º, muito bom pra se falar de "compra de votos" e "negociação de cargos" de qualquer escalão. O item 2 é bem curioso: "usar de ameaça contra algum representante da Nação para coagí-lo no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção". Tem o item 5, ótimo também: "opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário" (o juiz Sérgio Moro e alguns Ministros do STJ e do STF podem explicar melhor isto que não entendi bem o que seria "opor-se por fatos").

O item 6 também é curioso: "usar de ameaça para constranger juiz a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício". Taí outra coisa para perguntarmos ao Juiz Sérgio Fernando: "ato do seu ofício"... Enfim... Muitas dúvidas...

Ai logo vem o art. 7º que em seu item 5 traz verdadeira pérola dos "Crimes Tipo 2": "servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua". A dúvida é: e se a autoridade teve sua posse impedida pela Justiça? E se tal autoridade de subordinação imediata tem, na verdade, a própria Presidanta sob sua subordinação de fato? Esse argumento de defesa é bom? O crime fica descaracterizado? Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas... estagiar não é facil!

Mas vejam: esse país é tão divertido que eu acho até que esse argumento cola...

Mas voltemos à lei dos "Crimes Tipo 2".

E ai vem outra dúvida: será que esse movimento bizarro de "Diretas Já", exumado como no Thriller de Michael Jackson, se proposto pelos ocupantes de cadeiras federais, recai no tipo do art. 7º item 4 ("utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral")? Se convocado pela Presidanta, seria uma renúncia branca que viola a Constituição por impedir, por manobras, a sucessão legal prevista lá no papel assinado em 1988?

E por falar em barganhas de cargo, que passam longe de um presidencialismo de coalizão de modelo nórdico, será que o art. 9º item 5 ("infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais") passa livre? Talvez passe, sim. Mas certamente no provimento de um certo cargo, o depoimento do Bessias, que levou o termo de posse para ser usado em caso de qualquer necessidade daquele que ainda não tinha tomado posse, pode complicar a defesa. Nunca se sabe. Defesas são defesas, enquanto que as defesas, há... as defesas... também são defesas como qualquer defesa.

Voltando a Lei, temos que pular os artigos 10º e 11 porque já disse a defesa, a Presidanta não aceita e acha que está sendo injustiçada, pois teria ferido (ou não) em nome dos pobres e porque no entender dela esses seriam "crimes comuns" (não no sentido de "Crime Tipo 1", mas no outro sentido, o aureliano, de que seriam, digamos, "crimes gerais, habituais, normais..." e porque não dizer, corriqueiros e já tradicionais!). E por isso, não podem ser usados contra Sua Majestade.

Ai vamos para o art. 12 e pensemos no bunker do Golden Tulip, onde cargos foram negociados: lendo o item 1 desse artigo ("impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário") e lembrando da liminar do Ministro Gilmar dos Santos Neves Mendes, fico aqui com minha dúvida: se o STJD da nação disse que Pelé não pode jogar e eu o escalo mesmo assim, ainda que seja para jogar na lateral esquerda ou na quarta zaga, será que eu estou impedindo o "efeito da decisão" desse arqueiro da Pátria que mandou o Pelé não jogar at all? Ele disse na liminar dele que o corinthiano de Atibaia não poderia exercer formalmente as funções da Casa Civil, mas e se eu delegar a ele o exercício dessas funções informalmente, estaria eu cometendo um "Crime Tipo 2"? É muita dúvida mesmo...

Mas isso é tudo.

Ou parece ser tudo...

Porque a minha dúvida atroz, terrível, invencível, suprema, superior, inquebrantável e tipicamente estagial é esta: suponhamos que está tudo bem, a economia está de vento em polpa, não há crise qualquer na política nem nas polícias, a base está intacta, os pixulekos estão todos sendo pagos em dia nas devidas offshores abertas em nome de terceiros para não pegar ninguém em situação ruim, suponhasmos que "Lava Jato" seja apenas um lugar para lavar veículos automotores, enfim --- tudo na mais perfeita ordem brasilis; supondo isso tudo e imaginando um mandatário desabrido, ousado, crítico, consciente, sagaz, levando a cabo a sua representação de Estado até a ONU e lá proferindo o seguinte discurso - "Ladies and gentlemen, I herby would like to leave a personal statement, my own and private testemony that my country is a piece of shit and all the politicians over there are mean people with bad mood and full of the worst intentions against the definition of democracy and liberty. I would like to thank you and to thank all those who supported me so far. Kisses for my children, my wife, mamma and pappa and to the server who gave me extra cheese bread during morning breakfast on the hotel nearby" - será que neste caso teríamos "Crime Tipo 2"?

Sendo apenas moderado e imaginando que esse mandatário diga ou exponha na ONU, apenas e tão somente, um estado de crise, durante uma conferência, digamos, sobre meio ambiente ou outro assunto nada a ver com essa observação negativa e desnecessária - teríamos mesmo assim "Crime Tipo 2"?

Vamos imaginar isso tudo fora do âmbito do art. 9º item 7 e essa coisa brega e cafona do "decoro do cargo". É óbvio que essa postura viola, senão o decoro do cargo, a mínima etiqueta de buteco: só pode falar mal do corinthians quem é corinthiano e entre corinthianos e dentro do Itaquerão ou no Parque São Jorge - um corinthiano que fala mal do Corinthians para um Palmeirense em bate papo na Vila Belmiro comete, no mínimo, um suicídio uniformizado torcedorístico futebúlico.

Mas o que fazer nesses casos se o discurso não for tão indecoroso quanto o que imaginamos e for algo como descrevemos acima - uma mera observação negativa desnecessária e en passant, mas sem problemas de decoro (não porque foram lidas deixando de ser memorizadas, mas sim porque foram escritas com a habilidade das mais sofisticadas covardias diplomáticas). Há "Crime Tipo 2"?

Parece que não, nem mesmo no caso do decoro em decadência.

E do tipo 1, será que haveria um desses criminhos habituais, normaizinhos, gerais?

Fui de ponta a ponta no Código e na tal "Legislação Especial" e... nada!!!

Quando de repente, nessa legislação especial, tem uma rubrica lateral meio estranha, processada na Justiça Militar - uma tal de Lei da Segurança Nacional. Uma pequena herança deixada pelo Getúlio Vargas e usada desabridamente pela "Turma de 1968" e que ficou com o estigma de "Lei Maldita". Os crimes ali descritos vamos então chamá-los de "Crimes Tipo 3".

Há lá no seu art. 8º algo bem parecido com o art. 5º, item 1 dos "Crimes Tipo 2", mas com a diferença de que no art. 5º item 1 dos "Crimes Tipo 2" temos apenas "governos estrangeiros" envolvidos, enquanto que no art. 8º dos "Crimes Tipo 3" os entendimentos podem ser com "grupos estrangeiros".

Contudo, para a extensão do entendimento do que seriam esses "entendimentos com grupos estrangeiros", teríamos um metaentendimento de dificuldade comprometida: discursar na ONU seria um "entendimento com grupo estrangeiro"?

Ora ora.

Pior - seria a ONU um "grupo estrangeiro"? Seria a ONU algo como um MTST metanacional?

Ora...

Pior ainda (agora sob o ponto de vista político): os "Crimes Tipo 3" são processados pela Justiça Militar, lembremos, o que tornaria esse imbroglio um... golpe militar. E ai todos estariam felizes voltando a 1964, 1968, repetindo as histórias que nunca viveram, todos felizes dizendo em 2022, "eu vivi aquele tempo de 2016.......... tempos difíceis..... piores que '64!!!". Todos felizes, exceto eu.

Eu, que sigo com minha dúvida em 2016: falar cretinices do Brasil quando você é escalado para falar bem dele é "crime de responsabilidade"? Noutras palavras: "gol contra" o Brasil em Copa do Mundo é "crime de responsabilidade"? Bem, contra o Brasil ainda não sabemos, mas de for contra a Colômbia já temos jurisprudência: dá pena de morte...

Mas voltamos a nossa Anta na ONU ou numa entrevista coletiva no Waldorf Astoria. Imaginemos que esse mandatário desista, pois, de fazer esse discurso na ONU, mas reuna uma coletiva de imprensa internacional na qual só jornalistas estrangeiros amigos estarão. Lá ele diz tudo de feio sobre o Brasil e isso tudo é publicado na imprensa especializadíssima de algumas dezenas de nações que abrigam pessoas que colocaram o seu dinheiro a disposição desse país que o próprio mandatário inventou de falar. Ele vai lá e faz um discurso algo como: "Ladies and gentlemen, mambo jambo, bla, bla, bla... I hate may country, I hate my peers and they are all a bunch of jackasses. Take your money off there while there is time, 'cause the next who will be on my place is a mother 'you know what'".

Essa "falta de responsabilidade" seria um "crime de responsabilidade"?

Vejamos - o mandatário da República exerce duas representações: a de Estado e a representação política.

No nosso presidencialismo o presidente é Chefe de Estado (tipo a "Rainha da Inglaterra" e nessa função desfila em carro aberto, faz tchau-tchau para os súditos e fala bem do Reino dentro e fora dele) e Chefe de Governo (tipo o David Cameron e nessa função fala bem de si mesmo e mal dos adversários, apenas internamente e para seus eleitores, já que perder tempo com esse papo furado fora da ilha não traz votos favoráveis e nem tira contrários).

Um Chefe de Governo pode assim falar bem do Estado. Aliás, deve falar bem do Estado. Mas fazendo isso não o torna representante do Estado. Se falar mal também (sempre em casa) tudo bem - está dentro de seu job description. Mas atente: desde que esse "falar mal" seja caseiro e não como no exemplo do corinthiano, um ato de suicídio uniformizado torcedorístico futebulíco.

Se o Homer Simpson e o Silvester Stallone não podem falar mal do Brasil, se o Chael Sonnen pode ter os dentes quebrados pelo Cachorro Louco quando diz bobagens sobre o Brasil, menos ainda pode aquele que o representa, na função de Estado.

Na função governo, passa a ser uma questão de decoro (parlamentar, no caso de Cameron).

Mas um Chefe de Governo jamais fará isso depois de cruzar a alfândega de onde quer que seja.

Não faria o menor sentido. Nem interna, nem externamente, sendo, assim, um ato de pura estupidez gratuita.

Já o Chefe de Estado, comete "Crime de Lesa Majestade", um crime, digamos, de "Tipo 4" que vamos aqui chamar meramente de "Crime de Burrice" ou "Crime de Estupidez". Não ganha nada, não deixa de perder o que já vai perder e, pior, faz seus mandantes perderem diretamente com esse ato energúmeno e cheio de imbecilidade de alta sofisticação.

Isso porque, se um mandatário, na qualidade de Chefe de Estado, vai até uma organização internacional para "falar de seu governo" e para "criticar o seu Estado" ou ainda para "falar mal de seu próprio país" ou "denunciar a inoperância das instituições democráticas" (sobretudo quando o responsável por elas é ele mesmo, o mandatário Rei Tardado, que sempre tarda e vive falhando), na verdade, a incompreensão da básica separação entre função de Estado e função Governo faz com que o mandatário cometa esse novel "Crime Tipo 4", o chamado "Crime de Estupidez" ou "Crime de Falta de Responsabilidade", já que não há a menor previsão, pela estupidez do ato em si, para que isso possa se configurar "Crime de Responsabilidade" ou "Crime Tipo 1", ou ainda os Crimes de Tipo 2 ou 3.

Mas a dúvida permanece - esse "Crime Tipo 4" ou "Crime de Estupidez" é passível de impeachment?

Tendo, neste caso, a achar que não e, assim, concordar com o nosso Editor Mor e opinar que, nestas situações, o caso é mesmo de interdição.