terça-feira, 26 de abril de 2016

Corações Sujos

Caderno de Cultura
por Dionísio Crátino

Por algum tempo, "Corações Sujos" de Fernando Morais esteve na lista. Pela desimportância do tema e pela insignificância literária de seu autor, foi parar no fim da fila.

Eis que a fila andou e chegou a vez dele.

Li. Como previsto, nada mudou na minha vida. Daria para ter chegado a estas conclusões por outros caminhos, mas, confesso, as conclusões pelo caminho dos "Corações Sujos" foram de certa forma interessantes.

Na linha do que Morais já fez alhures, é uma pesquisa jornalística nitidamente terceirizada, cujos dados foram levados a um gabinete, copideskados, cortados e editados. Depois de uns 100 artiguinhos de jornal, tudo é compilado e transformado em um livro. Eis a "técnica literária" que me transpareceu dessa "obra" e que virou o Jabuti de casco para baixo.

O livro não tem uma personagem central, um argumento, uma história, um foco narrativo, bem ao contrário do que ele tentou fazer em "Olga" e em "Chatô".

É um apanhado de atitudes estúpidas elevadas a um tom pseudo-literário com ares de jornalismo investigativo, francamente confundido com o tom de uma coluna social misturada a recortes de páginas policiais antigas.

Não me leve a mal, leitor - o livro não é de todo ruim, mas o fato de não ser significante traz um alerta de aprendizado importante.

A parte as falhas de estilística e a completa indefinição de gênero (sem contar nos erros de conceito e conteúdo), há algo no trabalho que chama a atenção: é um apanhado de trezentas e poucas páginas com relatos e fotos para alçar a um patamar de destaque, certo aspecto extremamente negativo da cultura japonesa no Brasil.

Nas palavras de Umakakeba Sensei, em uma de suas raríssimas entrevistas para a grande mídia, "ignorância" é a melhor definição para o evento que Morais dedica páginas e páginas.

Qual a tese de Morais?

Quais as suas intenções ao dar holofote a um evento que durou pouco mais de um ano e trouxe aspectos negativos baseados numa ignorância cuja amplitude começava nas delegacias de polícia, passava por dentro da própria Colônia e foi parar na Constituinte de 1946 em um dos atos de preconceito racial mais toscos e vergonhosos da historia do Brasil?

O que se pretende quando dedica páginas e páginas para algo negativo dentro de um universo repleto de valores e aspectos positivos e que falta tanto aos brasileiros hoje?

Eis ai o maior defeito do livro: não há valores, não há nada "edificante", nenhuma mensagem positiva.

Trata-se de uma obra "desconstrutiva".

Mas inclusive nas obras de "desconstrução", é necessário sinalizar o que "vem depois".

"A Insustentável Leveza do Ser", de Kundera ou "O Mestre e a Margarita", de Bulgakov ou mesmo no "Brave New World" de Huxley há desconstrução, para construir ao fim. Se a desconstrução não busca ver valores nas ruínas, como fazia Borges, o trabalho se torna mero vandalismo literário ou, no caso dos "Corações Sujos", um vandalismo em palavras, narrador de um vandalismo de ações.

"Corações Sujos" promove um enorme desserviço à cultura japonesa em São Paulo: umas das únicas coisas que prestam neste país e lá vem o seu autor/editor Morais jogando um balde de fezes em palavras sobre tanta coisa importante que essas pessoas da cultura nipo-brasileira nos oferecem gratuitamente todos os dias desde que pisaram aqui pela primeira vez.

O foco narrativo poderia muito bem ter sido dado a partir dos makegumi, mas não - quis ele que o enfoque viesse a partir do tokkotai. Pior: a investigação das origens, dos valores que esses tokkotai defendiam, de onde vieram, quem eram no Japão, a qual estrato social pertenciam - tudo isso não merece sequer uma nota de fim de texto.

Morais transparece de forma absoluta ingênua (para não dizer, preconceituosa ao modo de Miguel Couto) de que tudo aquilo veio do nada, aqui no Brasil, assim, mais que de repente, num passe de mágica.

Esquece-se ou desconhece que essa colonia que o livro dividiu entre "derrotistas'' e "imperialistas" já vinha carregando chagas muito sérias desde o início da Dinastia Meiji. Com o Kasatu Maru, essas chagas vieram bem embarcadas.

Mas a ideia de Morais parece ser "falar mal" da cultura nipo-brasileira, mas com dados e argumentos: coisa de jornalismo investigativo de médio ou baixo estrato. Desconstrução pura, sem qualquer traço de positividade (ou mesmo de positivismo...).

E isso, como dissemos, é uma característica marcante dos trabalhos de Fernando Morais: não o condenemos por isso. São relatos que oscilam o estilo de uma coluna social, com páginas policiais e algumas notas políticas rasteiras para tentar pôr em xeque algo ou alguém, sem nada a apresentar em seu lugar. Morais fez isso em Olga e fez isso em Chatô. Conta coisas óbvias e detalhes típicos de uma coluna social sem importância, deixando de lado valores que poderiam ser explorados. Talvez Olga tenha algo construtivo aqui ou acolá, mas, vamos admitir: é muito pouco quando queremos falar dos desdobramentos do Holocausto Judeu no Brasil e da figura lateral do "Nosso Nazista Favorito", o medíocre ditador Getúlio Vargas, que em Olga ganha tintas de um "Charada Brasileiro" (com a licença de Supla, o usurpador da indecência antagonista).

E para que não me achem injusto por tentar comparar Morais a Kundera, Bulgakov ou Huxley, trago aqui duas biografias infinitamente superiores aos passatempos de Morais: "Mauá" e "Estrela Solitária". Em ambas há esse cuidadoso trabalho com os valores em jogo ao lado da pesquisa aprofundada sobre a vida e os fatos da vida de uma personagem. Em "Mauá" esse trabalho é óbvio pois não apenas os detalhes pessoais e alguns fatos da vida são explorados por Jorge Caldeira, mas sobretudo o que pensava Irineu, como pensava, o que queria e, sobretudo, quais valores deixou para nós, brasileiros. Num patamar categórico menor, "Estrela Solitária" captura uma personagem aparentemente simples e, no estilo já consagrado de Ruy Castro, nos toca (com valores) sobre a complexidade de se viver com simplicidade: a Bossa Nova de Ruy Castro é constante, o que se vê também no "Chega de Saudade". (E no afã de não ser injusto com Morais, acabei o sendo com Ruy Castro e Jorge Caldeira... é a vida...).

E nessa ideia de construir por valores, até o simplório e risível Paulo Coelho faz trabalho melhor do que Morais. José Sarney, eternizado pela críticas de Millôr Fernandes, igualmente tenta, ao menos, falar bobagens com valores imbuídos.

Valores.

Isso não há em "Corações Sujos".

Algo que poderia ser explorado, pois do outro lado da Shindo Renmei há os que venceram esse embate da ignorância, "acreditando" na derrota. Fiquei esperando por isso, e mesmo chegando à última linha, me senti credor dessa ponderação, que o autor não faz.

Mas entendo perfeitamente porque não o fez.

Morais não o fez porque demonstra no livro que não tem a menor compreensão de como funciona a cultura japonesa. Nem ele, nem os estagiários que o auxiliaram na "pesquisa".

Desde erros crassos conceituais em não ter a menor noção do que é um ronin até detalhes absurdos descritos em "lutas corporais" nas quais as personagens são descritas como "faixa preta disso", "mestre daquilo" e outras tolices gigantescas, Morais não mostra esse outro lado: daqueles que venceram acreditam na derrota. No grosso e no seu bottom line, o livro é um arco de preconceitos, uma louvação de lugares-comuns, não apenas como o "faixa preta", mas também o "harakiri", o "tintureiro", o "japonês putanheiro", o "misógino" e outras imbecilidades que já contam com mais de 100 anos de repetição nestas terras. E nesses pontos, o livro é um abissal desserviço a cultura japonesa no Brasil.

A maior lição da Shindo Renmei e da pureza da cultura japonesa verdadeiramente Samurai é completamente deixada de lado numa obra que se preocupa mais com os ignorantes tokkotai do que com a riqueza de tantos outros Samurais nipobrasileiros que legam até hoje um exemplo de trabalho, seriedade, respeito, circunspecção e compaixão. A lição da Shindo Renmei está fora dela, está exatamente naquilo que ela dizia combater. O próprio espírito da Shindo é consagrado (o yamato-tamashii ou o yamato-gokuro, a saber, o "espírito da grande harmonia"), na realidade, por suas vítimas. Eis a lição verdadeira da Shindo Renmei: vencer acreditando na derrota; vencer pela força do outro.

De certa forma, Morais ainda reproduz o proselitismo do espírito antinipônico daquela época, vazado em jornais e panfletinhos regionais dos anos 1940 (alguns deles dirigidos até pelo controverso Samuel Wainer, um típico "blogueiro do Getulismo"), com ares de "jornalismo investigativo" sem ao menos confrontar uma linha sequer daqueles documentos que lhe chegaram as mãos: além dos panfletinhos, boletins de ocorrência e relatórios do DOPS e outras peças ou fontes que passam longe do conceito de imparcialidade que se procura em um jornalista.

Não sei se me fiz claro, mas o livro não é de todo uma perda de tempo, desde que se tenha em mente tudo aquilo que não vai ser encontrado nele e principalmente no que diz respeito à maior falha jornalística de todas: não ouvir atentamente o outro lado.

Mas mais importante que isso --- a Shindo Renmei descrita por Morais está, salvo as devidas proporções, repetindo sua história nos dias de hoje: refiro-me ao PT e às "esquerdas" e a sua turma do "cospe-cospe".

O PT é hoje o que a Shindo Renmei foi naqueles idos de 1946 e 1947: não apenas a ignorante e fanática crença de que não foram derrotados, mas a estigmatização como "coxinhas", "reacionários", "fascistas" e outras pechas de "coração sujo" herdadas do discurso de campanha dilmista/santanista do "nós contra eles", que são aplicadas e replicadas hoje àqueles que já se conformam e acreditam que o PT acabou e a aventura de 18 Brumário bolivariana chegou definitivamente ao fim, é de semelhança gigantesca com as pichações feitas em Bastos e Tupã na casa dos japoneses "traidores da pátria", os makegumi.

Hoje são os blogs patrocinados que "picham" a "casa virtual" dos incrédulos, dos "coxinhas", dos "reacionários", dos "fascistas", dos "makegumi da direita", numa atitude, digamos, .... fascista... e em nome daquilo que o outro lado chama de "petralhas", "mortadelas" e elogios que tais.

Eis a lição interessante do Shindo Renmei para o PT de hoje, que se não cometeu, como aquele, disparos a bala contra descrentes, tendo os trocado por disparos a cuspe, tem todas as características de "ignorância" que marcou a reação aos incrédulos; com a única diferença, entretanto, para o caso japonês - no caso atual ninguém admite a existência de uma derrota e de uma necessidade de construção: todos acham que venceram quando, na verdade, de vitória em vitória, por lado a lado, vemos caminhando na derrota geral de índios contra índios.