terça-feira, 15 de março de 2016

Golpe


Caderno de Política
Por Cícero Esdras Neemias

Eu tinha, tal qual meu amado editor chefe e Diretor de Redação, alguns outros planos para a coluna desta semana.

Estava gostando daquela história de falar sobre coalizão.

Muito porque o próprio ex-presidente, em depoimento na Polícia Federal, explicou como funciona o mecanismo:

Delegado da Polícia Federal:- Como eram realizadas as nomeações de diretores da Petrobras?Declarante:- Eu vou repetir o que eu já falei, não apenas o diretor da Petrobras, qualquer diretor ou qualquer pessoa que vai trabalhar no Governo Federal, quando você ganha uma eleição, eu vou explicar, quando você ganha uma eleição, sozinho, são as pessoas do partido majoritário que escolhem. Escolhem o Delegado Geral da Polícia Federal, escolhem o Superintendente se quiser escolher o Superintendente, escolhem o Procurador Geral da República. Tudo isso é o presidente que faz. Quando você trabalha numregime de coalizão, você sai de uma coalizão e você coloca ministros de vários partidos pra governar. Cada ministro e cada líder do partido coalizado, participa da montagem do segundo escalão do governo. Então quem indica os diretores são as pessoas da área do ministério, são as pessoas das lideranças dos partidos que compõem o governo que vão indicando, essas pessoas passam pela Casa Civil, tem uma investigação GSI, pode falar assim?
Defesa:- Certo.
Declarante:- GSI, sabe? E se a pessoa não tiver prontuário, se a pessoa não tiver capivara, cada pessoa indica. Eu já fui perguntado, já me perguntaram de Paulo Roberto, já me perguntaram do Duque, já me perguntaram... Essas pessoas são funcionários de 30 anos da Petrobras. São pessoas de carreira, que nunca a Polícia Federal levantou a suspeita, nunca o Ministério Público levantou suspeita, nunca a imprensa levantou suspeita, nunca a oposição sindical levantou suspeita, nunca nenhum dos 86 mil funcionários levantaram suspeita. Porque lamentavelmente as pessoas não nascem com carimbo na testa, 'eu sou filho da puta' ou não, 'eu sou ladrão' ou não, você fica sabendo depois. Quantos caras vão no casamento da filha, entra com a filhinha toda bonitinha pra entregar virgem a um canalha que 3 meses depois dá uma surra na filha dele? Então, meu filho, essas pessoas são gente de carreira, gente que estão lá, que já tinha ocupado cargos importantes na Petrobras. Então, é assim que são indicadas as pessoas. Já vem lá o nome, vem dois nomes, três nomes, quatro nomes, esse aqui indicado pelo partido tal, Ministério é tal, o líder é tal. "Esse cara aqui é mais qualificado. - "É qualificado? Vamos indicar."
Delegado da Polícia Federal:- A palavra final do presidente?
Declarante:- Hein?
Delegado da Polícia Federal:- Enquanto o senhor era o presidente a palavra final era sua?
Declarante:- Não, a palavra final era do conselho da Petrobras.
Delegado da Polícia Federal:- O conselho então era político?
Declarante:- Não, o conselho é o conselho da Petrobras, é o conselho que nomeia, isso é como embaixador, é como Ministro da Suprema Corte. Ou seja, o Presidente indica e é referendado pelo Senado ou não. Passa ou não.
Delegado da Polícia Federal:- Era o senhor que indicava os presidentes da Petrobras?
Declarante:- Os presidentes da...
Delegado da Polícia Federal:- Os diretores da Petrobras e o presidente?
Declarante:- O presidente da Petrobras foi escolha pessoal minha, o Gabrielli, e primeiro foi o José Eduardo Dutra, escolha pessoal minha.Não teve interferência política, era minha.
Delegado da Polícia Federal:- Certo. E os diretores?
Declarante:- Os diretores, eu acabei de dizer pra você.
Delegado da Polícia Federal:- Sim, por isso que eu perguntei ao senhor se a palavra final era sua.
Declarante:- A palavra de mandar para o conselho é minha.
Delegado da Polícia Federal:- Ok. Era uma espécie de filtro, então?
Declarante:- Sabe?
Delegado da Polícia Federal:- Ok. Houve troca de diretorias da Petrobras no início do seu mandato?
Declarante:- Houve, era tudo tucano, porra. Só tinha tucano, eu fui obrigado a tirar. Tinha um que era tido como um deus, tinha um que era tido como um deus da Petrobras, aí eu tirei, foi trabalhar com o Eike Batista, é o que o afundou o Eike.
Delegado da Polícia Federal:- O senhor tinha conhecimento da divisão das diretorias da Petrobras por partidos políticos, para que indicassem nesse sistema que o senhor...
Declarante:- Não é divisão por partido político, gente, principalmente um leigo, um burocrata que não entende de política é que trata a questão da política como se fosse uma coisa secundária. Política é uma coisa muito séria e muito responsável, fora da política não existe saída pra nenhum país do mundo. Então quando um presidente no Brasil, nos Estados Unidos, na Suécia ou na Finlândia, ganha uma eleição no sistema de coalizão, ele é obrigado a governar num sistema de coalizão. Não é de partido político não, é fazer com que as pessoas que ajudaram a ganhar as eleições participem do governo. É assim que funciona. É assim que o Janot montou a equipe dele, assim é todo mundo da equipe. Quando você é eleito para um cargo, você monta em função das pessoas que você conhece. Você não vai colocar o inimigo, que trabalha contra os interesses do teu programa de governo, para dirigir uma empresa.

Bem, essa verdadeira aula de política de coalizão sepulta a sequência de posts que eu havia iniciado sobre coalizão e traição e torna o meu trabalho de colunista inútil em relação a esse tema.

Fico obrigado a fazer uma guinada nas colunas (praticamente um cavalo-de-pau) e gostaria de iniciar essa guinada na rabeira de uma outra guinada que está sendo colocada no forno da vida real, da política real, ou da real politik.

Trata-se do conceito de golpe de estado.

O golpe de estado ou coup d’état é simples de ser explicado. Vou fazê-lo para esclarecer o tema para a minha avó, que é a única que lê a minha coluna, apesar de analfabeta: um estado, seja ele democrático ou autoritário, funciona segundo regras, que podem ser escritas ou não. Essas regras criam um padrão de comportamento, um certo political pattern. Exemplo: há democracias que dizem que a cada quatro anos você elege um presidente. Portanto, você tem a expectativa de troca a cada quatro anos. Em alguns lugares é possível que a mesma pessoa continue mandando, mas isso depende da aceitação popular. Em alguns lugares há limites para essa continuidade, em outros não há. Mas a expectativa está lá e é cumprida a cada quatro anos. Em todos esses lugares há regras que impedem que alguns sigam até o fim do quarto ano se aprontarem demais. Nesses casos há uma exceção à regra da expectativa e, como toda exceção, não deve ser usual. Em alguns lugares se dá por recall, em outros por impeachment ou em outros, como já defendeu nosso Diretor de Redação, por pura incapacidade civil. Se começar a ser usada na mesma proporção da regra, podem crer, há algo de errado com as pessoas (mas não com as regras). Nas ditaduras, a expectativa depende da vontade exclusiva de quem está no poder, seja o titular desse poder a própria pessoa ou Deus. Se o ditador cansar, ele sai e entrega o poder para outro ou se Deus quiser, ele sai e vai tocar Harpa na portaria do céu com São Pedro sem deixar sucessor e os sobreviventes dão um jeito de arrumar a casa. Mas lá está a regra, escrita ou não - tem que esperar ele sair um dia.

O golpe de estado é perpetrado quando não há motivos para a aplicação da exceção (questão espinhosa) ou quando, mesmo não havendo motivos, o mandato é abreviado no curso do exercício, seja por mudança de regra aplicada imediatamente durante a jogação do jogo, seja por intervenção direta ou indireta de alguém para que a regra seja mudada depois. Isso é golpe.

Alguns lugares, para amenizar os golpes, submetem a tomada de poder por alguém que não foi escolhido diretamente para isso, a um referendo popular; algo como um “ok” a posteriori, uma espécie de eleição ad hoc. É golpe também.

Vamos para alguns exemplos?

Quando Napoleão se proclamou Imperador e mudou o regime na França, houve golpe de estado.

Quando o mesmo patético político tentou fazer uma retomada por meio de um “governo de 100 dias”, houve ridícula tentativa de golpe de estado.

Quando Lênin depôs o Czar na marra, houve golpe de estado.

Quando Hitler se tornou Chanceler, ele deu um golpe de estado.

Quando Vargas tomou o poder em 1930, ele deu um golpe de estado.

Quando Fidel tomou o poder escorraçando Batista do Palácio, houve golpe de estado.

Quando Jango foi deposto para que Castello tomasse o poder, houve golpe.

Quando Figueiredo abreviou o seu próprio mandato e impôs regras de transição aplicáveis ao mandato seguinte, não houve golpe de estado.

Quando Ianaiev tentou desperestroikar a Desunião Soviética, tentou dar um golpinho de estado.

Quando Collor foi deposto, não houve golpe de estado.

Se o golpe gera uma revolução política depois, como foi o caso da "Revolução Russa", da "Revolução Cubana", do "Estado Novo" (para alguns) da "Gloriosa de 64" (para outros), isso já são também outros 500... Mas na matriz, tecnicamente, é golpe. Pois há revoluções sem golpe, como foi o caso de Mandella na África do Sul e da Reconstrução Americana, que contou com o quase impeachment de Andrew Johnson (terminou o mandato por causa de um voto de minerva no Senado) e a condução de Rutherford Hayes para suceder Johnson. O mesmo em relação ao período Entre Guerras, a Great Depression e o New Deal, já relatados aqui pelo colunista Magnus Blackman. São exemplos de Revoluções sem golpe, pois este não é pressuposto técnico daquela.

Mas voltando ao conceito de golpe, o caso clássico de golpe de estado talvez esteja nesses flertes revolucionários que seduzem os pré-adolescentes: o líder com uma bandeira e um panfleto em mãos, invade, digamos, os equivalentes no mundo ao nosso Palácio do Planalto, manda prender o mandatário de plantão por um "crime moral" qualquer, senta na cadeira, no lugar dele, e começa a assinar decretos seguindo o panfleto que leva no bolso da algibeira.

Essa é a forma de um golpe para ser debatida no ensino fundamental. E, professores, atentem: é muito importante explicar para os alunos que fazer isso é muito, muito, muito feio, viu! Não importa a razão ou o intento justificativo da medida tomada a força (na maioria das vezes, justificativa ad hoc, escrita pelos vencedores da história): é feio e ponto final.

Mas a forma para ser discutida no ensino fundamental e no ensino superior é aquela que Hitler inventou.

Ele fez assim: quando era adolescente, tentou dar um golpe do tipo adolescente – ele e um bando de vagabundos, depois de voltarem da I Grande Guerra com estrelinhas de libertador derrotado, de herói de guerra e com uma cartilha embaixo do braço, tentou tomar o poder na Baviera literalmente "na porrada". Essa tentativa de golpe, conhecida como o Bürgerbrau Putsch (ou Golpe da Cervejaria) veio bem ao modo popular: tiros para o alto em um bar e, todos bêbados, sairam pelas ruas para tomar o poder: ridículo. Não deu certo e foi preso. Apesar da pena aplicada ter sido razoavelmente dura (5 anos), foi anistiado e voltou para a vida política depois de 6 meses, com o seu panfleto tornado livro de caráter autobiográfico, o Mein Kempf. Por razões óbvias, nunca li, mas todos sabemos qual era a cartilha nacionalista ou nacional-socialista do moleque: atacava a imprensa, sobretudo a imprensa que ele chamou de propangandista antigermânica; louva a “psicologia de massas” e formula um estuário de pequenas regras e “macetes” de como fazer um bom discurso para as massas, como hipnotizá-las – falar ao modo do povo, com palavras e metáforas que eles entendem e contar boas histórias, se possível com raiva, com ódio, para que o povo se sinta inflamado pela causa, sensibilizado com a injustiça que ele desenha de maneira simples em seu discurso. É o velho papinho furado do perseguido, usado por Catilina séculos antes. Pois bem, com essa cartilha em mãos e esse papo furado na boca, dirigiu-se primeiramente à juventude alemã, desempregada e inexperiente. Alistou milhares e milhões de desocupados para defender fisicamente a sua causa nas ruas. Beneficiou-se também do sentimento sebastianista da sua volta ao cenário político, após um exílio injusto na prisão - o velho papo do ex-preso político, do perseguido, alvo de uma suposta injustiça, que se fora justiça, teve um tratamento bem brando. Os estudantes e jovens se espalharam no operariado, na classe média (ou, como prefere Chauí, “classe trabalhadora”) e engrossaram as fileiras. Eram os "estudantes profissionais". Foi a vez dos agricultores e dos pequenos produtores rurais sem emprego e sem terra para cultivar e logo os veteranos de guerra junto com as classes baixas aderiram ao movimento, popularizando o gesto de louvação com a mão direita aberta em 45º. Alguns lugares depois vieram a fazer o mesmo gesto, mas com a mão fechada, mas isso são outros 500. Eis que um furdúncio na presidência da república alemã gerada por uma polarização entre Brüning e Papen e a incapacidade daquele em controlar a inflação precipitou a queda de Brüning e a condução de Papen para a cadeira-mor. Carente de um apoio de coalizão com o partido da maioria do Reichstag (o Congresso deles daquele época), foi negociar com o chefe, um tal de Hitler. Da primeira vez, pediu demais e ficou sem nada. Jogo de perde-perde: novas eleições teriam expurgado Papen do poder e colocado um suposto adversário de Hitler no poder, um tal de Hindenburg. Aquele propôs a este o mesmo que havia proposto a Papen e um pouco mais: se da primeira vez pediu demais, da segunda pediu um pouco a mais que o demais – simplesmente um superminstério. Um ministério pret-à-porter, não previsto na Constituição, nem na regra do jogo, nem em nada nem em lugar nenhum. E mais: esse superministério teria poderes excepcionais. Hindenburg não ligaria de fazer o papel de “Rainha da Inglaterra na Alemanha” e concordou em dar um cargo especial ao chefe do partido mais popular da Alemanha e que tinha o apoio de toda a classe trabalhadora. Seria bom para os dois políticos de plantão. Fê-lo Chanceler. Nesse cargo ditou novas regras que seriam aplicáveis a ele e quando Hindenberg morreu antes de ter terminado o seu mandato, o Chanceler, que tinha poderes para isso, fundiu as funções, meteu a coroa na cabeça e fez o que fez. Termina ai a história de um case clássico de golpe de estado sofisticado, aquele golpe pelas beiradas, que começa com um pedido indecente, segue com um superminstério, e um Chanceler que faz pelos incompetentes o que eles foram gratos por não fazer. Um salvador da pátria, que ajusta a economia e chega lá sozinho, sem que um único voto o tenha conduzido ao posto. E, ao seu jeito, coloca milhões de coxinhas no forno.

Hoje, 15 de março de 2016, o Brasil está a caminho de um golpe, idêntico ao que perpetrou Adolf Hitler em 1932-1933. Não sei ainda se coxinhas irão ao forno, mas não há motivos nos discursos para que fiquem na geladeira.