terça-feira, 24 de maio de 2016

Medo, Inc.

Caderno de... CULTURA!!!
por Dionísio Crátino

Festa boa dura pouco. Nem bem atacávamos as primeiras coxinhas e empadinhas da festa quando, antes mesmo do parabéns, o dono da festa disse que era tudo "a brinca", qual seja, não estava valendo nada.

Na primeira grita de meia dúzia de dorme-sujos, o governo interino voltou atrás e desfez o desfazimento do MinC, ressuscitando a já Pasta Zumbi.

Politicamente, um ato desastroso. Demonstra (com o perdão do trocadilho) séria temeridade. E a temeridade foi dupla, pois coloca em desconfiança a decisão tomada pela extinção bem como o seu propósito, que permitiu um recuo em prazo tão curto de tempo.

Na sua nova conformação, o MinC poderia ser a abreviação do título proposto a esse artigo: Indústria do Medo.

As razões são infinitas, pois não apenas temer (o verbo, não a pessoa) é um ato que nasce da insegurança e da fraqueza de propósitos, como se externa em atos de covardia, receio, enfim... medo - palavra que demonstra que seu titular está diante de algo desconhecido. So se teme (com o perdão do trocadilho novamente) o que se desconhece. E neste ponto, voltamos à fraqueza dos propósitos que motivaram a extinção da Pasta de Propaganda: diferentemente de um conceito de Estado e Nação que deveria se propor, a extinção teria sido por motivos econômicos. E como a economia seria menor do que a grita, levantou-se a bandeira para a grita e deu-se-lhe* a vitória.

* - nota: Fa-lo-ei ênclises corretamente, pois não as temo.

Por ser uma economia menor, a sua extinção teria sido, digamos, simbólica: comprometo-me a "cortar na carne" e extinguir "x" cargos de 1º escalão, etc, etc, etc. Noves fora, um a mais, um a menos, que se ressuscite a Pasta Morta-Viva.

E é exatamente na simbologia que o problema reside: enquanto o governo fez cálculos orçamentários e transferiu essa simbologia para um bilhão pra cá, ou outro bilhão pra lá, aplicou a simbologia do ato na régua errada.

O ato de se fechar esse Ministério Zumbi, repita-se, tem uma simbologia que vai muito além do bilhão que faz cócegas no rombo deixado pela Dona Dilma e seu grupinho de figuras folclóricas: sua simbologia está na mensagem que se daria ao Brasil a respeito de qual cultura se quer construir e, sobretudo, como ela deve ser construída e, last but not least, em favor de quem essa cultura precisa ser construída e preservada. No médio prazo, a mensagem deveria ser reforçada no sentido do seguinte questionamento: qual o verdadeiro papel do Estado e de um Governo Federal na verdadeira promoção, criação e preservação de uma Cultura, seja ela de âmbito local, seja ela de âmbito nacional (se é que existe alguma cultura genuinamente nacional)? Eis a resposta: uma nova Emenda Constuticional que simplesmente apagasse por completo as Seções II e III do Capítulo III ao Título VII da Constituição (não perdendo o costume de aproveitar a técnica de se enfiar numa reforma algo um pouco além do que ela comporta: elimine-se essa tolice do desporto nacional item).

Se o temor do radicalismo da proposta viesse vazado de incomômodo diante do desconhecido, poderíamos substituir todos os artigos da Seção II do Capítulo III ao Título VII da Constituição com os seguintes comandos legais: "Art. 215. Caberá aos Municípios, na forma do art. 30, IX desta Constituição, fomentar o exercício e o acesso aos meios culturais e formas de expressão admitidas em lei. Parágrafo Único. Em relação a meios culturais e formas de expressão regionais e supramunicipais, poderão os Municípios, para o cumprimento do caput deste artigo, organizar convênios multilaterais com outros municípios ou entidades privadas, bem como formar consórcios públicos de acordo com a conveniência de cada município ou forma de expressão envolvida.   Art. 216. A União poderá, seja individualmente, seja como coordenadora de uma política regional na forma do art. 43 e Parágrafos desta Constituição, fomentar o exercício e o acesso a meios culturais e formas de expressão admitidas em lei que exclusivamente se conformem e se definam, na forma da lei, como culturas regionais ou nacionais".

Pronto.

Sem Ministério para tratar disso. E muito cá entre nós, esses comandos legais não precisam estar na Constituição: caberiam muito bem numa Lei Federal atribuindo o papel residual do Estado e dos governos na formulação de políticas públicas voltadas a cultura.

Cabe ao público definir políticas públicas, sem Estado intermediando ou moderando.

Essa oportunidade foi perdida porque temeu-se à grita dos dorme-sujos.

Nas primeiras horas de faniquito geral, abriu-se mão da oportunidade de se debater a Cultura brasileira em números e resultados. Devolveu-se a fatia do bolo aos propagandistas e, pior, devolveu-se-lhes o microfone e os salarinhos para que continuem cantando a "Canção Perdida de 64".

No necessário debate, que não ia durar muito pela completa e absoluta incapacidade de diálogo, compreensão e civilidade por parte dos interlocutores Mínquicos, poder-se-ia começar com os números (capítulo da história recente que, dizem, é da especialidade dos atuais governistas de plantão, o que depois de outra vacilação na área da economia na tarde de hoje, deixa-nos dúvidas): pouco mais de 80% do Orçamento da Pasta Drácula é gasta com... a própria máquina. Exatamente: pouco menos de 20% da dinheirama que envolve um total de 2 e poucos bilhões, qual seja, algo em torno de meio bilhão, é o que acaba chegando nas mãos dos artistas para fins, digamos, culturais. O resto é para sustentar a máquina que supostamente burocratiza o fluxo (segrega as notas, conta, controla, entrega, paga, deposita em conta, administra os fundos e fiscaliza os gastos e, além disso e sobretudo, escolhe os felizardos que vão ganhar verba pública para tratar como privada - uns até levam isso ao pé da letra e praticam o famoso "caminhar defecante").

Os artistas de verdade, tolos, são vítimas de um vampiro que lhes paga, digamos, algo como um dez por cento de uma conta de bar. O resto da dinheirama fica na máquina, com o pessoal dorme-sujo que tem um cargo no governo para "ajudar os artistas" que "ajudam o governo" (é aquela velha história do "você tem que me ajudar a te ajudar").

Outro ponto importante, muito além do financeiro, é referente aos resultados culturais: o quanto esse investimento todo trouxe de melhor para a nossa cultura, seja no âmbito local, seja no regional, seja no quimérico nacional?

Vejamos: fechamos mais museus do que abrimos. Conseguimos ainda (literalmente) tacar fogo em um deles. Museu do Ipiranga, Museu da República, Museu Nacional, Museu da Língua Portuguesa: todos fechados, seja de fato, seja de direito. Os que não foram fechados ainda é porque alguém perdeu a chave e eles se mantém abertos por pura preguiça de fechá-los. E lembre-se: fechados todos durante o nosso maior fluxo de turistas, qual seja, durante o biênio compreendido entre Copa e Olimpíadas. Abrimos o Museu do Futuro, ou melhor, deixamos para o futuro a sua abertura definitiva, para que possa funcionar no presente, provisoriamente...

Teatros Clássicos item: Municipal e Cultura Artística de SP, Municipal do RJ, Theatro Amazonas, Polytheama de Jundiaí, Pedro II de RP, Theatro Deodoro de Maceió, Santa Isabel no Recife e, porque não, o de extremo mau gosto arquitetônico, mas igualmente importante Teatro Nacional de Brasília - todos, sem exceção, singram decadências impressionantes. Nunca tiveram uma única ajuda sequer do MinC, seja para manutenção, seja para a respectiva existência. Nem sequer o seu vizinho Nacional.

Não vamos aqui nem listar as orquestras que quebraram por falta de verbas. Basta dizer que não sobrou uma sequer com verbas públicas.

Parques, ao menos, sobraram alguns - mas novos não se fizeram, nem com a ajuda local, nem com o dinheiro do MinC, sempre reservado para otras cositas más. Usar que é bom, todos são usados, principalmente nesses eventos de péssimo resultado denominado Viradas Culturais - o balanço nos hospitais é sempre mais impressionamente do que nos palcos: entre vítimas de arrastão com facadas, vítimas e causadores de acidentes de trânsitos e os milhares de casos de overdose noite a dentro, as Viradas tem sido um sucesso absoluto nos pronto-socorros e UTIs de São Paulo.

Cinemas clássicos no centro de SP e do RJ fecharam e, pasmem, várias casas do circuito blockbuster também cerraram as portas Brasil a fora, Brasil a dentro e Brasil a gosto.

E por falar em cinema, nunca fomos tão patéticos. Desde que Fernando Meirelles e José Padilha partiram desta país, nossa sétima arte oscilou entre grotescas cinebiografias e documentários de propaganda da pior qualidade possível. Poderia citar as "raras exceções", se houvesse.

Bibliotecas, então, poderíamos apenas ficar na penúria da Nacional, no RJ da Mário de Andrade em SP, ou ainda da miséria do Centro Cultural Vergueiro em SP... Tal qual a nossa cultura gastronômica, que fecha um média um restaurante por dia e, na mais lucrativa, acessível e simpática das culturas (a gastronômica), não vê um centavo sequer do MinC para alimentar os famintos por Cultura e os famintos da Cultura.

Nossa música, outrora de exportação, tornou-se um dos itens de maior importunação para quem houve e ouve. Não falo apenas da diarréia sonora dos MCs, dos cancioneiros da ostentação e dos cordéis do feminismo às avessas declamados nos bailes da modernidade - lembro-me, por exemplo, de Caetano Velloso, outrora "artista de protesto" e hoje meramente um rearranjador do cancioneiro "brega-popular" com tonalidades "gourmet" (tudo isso para não dizer que ele se tornou, com verba pública, um cover infeliz de Aguinaldo Silva "com banquinho e violão"). Se o mau uso da verba pública por parte de Caetano parasse no mau gosto musical que acompanha o mau uso dos recursos, ah, vá lá..., mas não: Caetano usa (ainda que indiretamente) essa mesma verba para ir até Israel e praticar, na volta, um barato e cafajeste antisemitismo que se diga, envergonhou seu companheiro e ex-Ministro... da Cultura!!! Simplesmente patético...

Paro aqui antes de entrar na poesia e na literatura para não ter que falar de Paulo Coelho e Fernando Morais, o que restou de literário nestes tempos de fim e refim do enfim do MinC (e neste caso, o Medo é grande...).

Pois é; são esses os resultados que continuaremos a colher do MinC enquanto ele existir e enquanto essa modalidade de intervenção estatal na cultura prevalecer.

Mas não apenas esses, pois a pergunta volta ao propósito simbólico temido e desconhecido: se é de economia apenas que falamos, onde então foram parar os quase 3 bilhões anuais se todos esses lugares que acima lembramos (eu e você que chegou até aqui, leitor), amargaram, cada qual, a sua respectiva morte cultural?

Basta olhar nas passeatas de grita: meia dúzia de "músicos" que não sabem identificar um ré-maior em relação a um si-bemol, "compositores" que não sabem diferenciar um baixo de um barítono, guitarristas incapazes de dizer qual é a "nota só" do samba de Tom, instrumentistas que não saberiam escutar e dizer qual é o oboé e qual é o sax alto, cineastas revolucionários que nunca assistiram em suas vidas o Oktyabr de Eisenstein ou que, embora citem o Cidadão Kane como o melhor filme de todos os tempos, são incapazes de dizer o motivo (talvez porque tenham dormido a partir do relato de Jedediah Leland e acordado na cena do trenozinho).

São esses funcionários da cultura que estão gozando do dinheiro que deixou de ir para o Theatro Municipal de SP, para a Biblioteca Nacional do RJ, para projetos locais de Fernando Meirelles, para o Cine Del Rey, o Vila Rica, o Astor em SP (o Guarujá ainda está abandonado até hoje), ou, vá lá, os Museus do Ipiranga ou o Nacional no RJ, enfim, esses funcionários que determinam o destino das verbas.

Esse MinC, além de financiar os discursos fascistas e neonazistas de Caetano, literalmente tira dinheiro da cultura local para montar uma propaganda nacional partidária com os bordões da "Canção Perdida de 64".

Não à toa, os saudosistas reclamam: ah, como era bom naquela época... ah, como tínhamos boa música; exportávamos samba para ouvintes de jazz; fazíamos cinema de vanguarda; ah..., como era bom naquela época*.

* Naquela época - pode ser substituído por "na época em que não havia MinC".

Olhando em volta e saindo desse nosso pantagruelismo cultural em que nos meteu o MinC desde os idos de 1990, vamos a New Orleans, Buenos Aires, Nova Iorque, Granada, Berlim, Londres, Paris, Tóquio, Viena, Istambul, Tel-Aviv, Estocolmo, Edimburgo, Dublin, Lima, Madri, Santiago, Lisboa, Córdoba, Santo Domingo e constatamos, espantados: o fomento a cultura é quase 100% local, com pouco ou quase nada de dinheiro ou fomento com "diretrizes nacionais". E funciona de maneira fantástica, fabulosa. O "nacional" não se mete em cultura. Em todos esses lugares os museus, os cinemas, as bibliotecas, os teatros, os músicos (de rua e os indoor), que tanto gostamos de ir ver quando viajamos para tais lugares, são, cada qual com seu orgulho, locais; regionais. Em Granada fazem questão de dizer - aqui não é Córdoba! A grande orquestra é Filarmônica de Berlim e não Nacional da Alemanha. O grande museu norte-americano se chama Metropolitan (MET, para os íntimos) e, para quem venha lá dizer que o segundo melhor é o Museu de História Nacional em Washington DC, admitamos: fato, é um grande museu, 100% privado, sem um único tostão da "viúva" e ainda assim, um dos poucos "nacionais". Há de nacional ou até de internacional um traço que sustentaria um prédio reservado, com verba nacional, para um Museu de História Nacional. Mas não: cada cidade faz questão de ter o seu e chamar de seu - Nova Iorque, Miami, Chicago, Washington DC, San Francisco; todos competindo sadiamente entre si. E um melhor que o outro.

Pois bem: aqui é igual?

Não. Nem em tese.

Se no nome temos um Theatro Municipal de São Paulo, pertencente 100% ao Município de SP, ao lado de sua respectiva finada orquestra e de seu já embalsamado corpo de baile, fato é que em nenhum desses outros lugares citados com análogos Theatros Municipais, há uma regra na respectiva Constituição Nacional, seguida de uma Emenda Constitucional (!!*&^%$#!!!!) que deliberadamente exclui, via Sistema Nacional de Governo, qualquer incentivo local que não seja do interesse do partido que está governando no âmbito nacional. Simplesmente porque na Constituição foi criado um Sistema com órgãos gestores da cultura cuja finalidade principal é a democratização dos processos decisórios com controle social.*

* controle social, leia-se - análise, feita por grupo censor de controle de trabalhos artísticos, informativos etc., ger. com base em critérios políticos que estejam em sinergia com o Sistema Nacional, com o fim de julgar a conveniência de sua liberação à exibição pública, publicação ou divulgação, direta ou indiretamente (neste caso, a fim de ter recursos liberados que permitam a dita cuja exibição pública, publicação ou divulgação direta).

Assim como faziam os milicos pré-MinC, controla-se por censo, o mecanismo de participação para controle social do que entra e do que sai do sistema. Simples assim.

Eis o que nos distancia, culturalmente, do resto do mundo e nos aproxima, culturalmente, de uma Venezuela, de uma Coréia do Norte, de uma China. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Eis, leitor, a chance perdida por temer-se demais e dialogar-se de menos.

Ecce Ars Poetica.

Lavo minhas mãos.