Caderno de Política
por Cícero Esdras Neemias
Após a eleição de
Donaldo Trompete (e não "Topete"), seguidas por uma "guinada à
direita" no nível municipal brasileiro, causa (direta ou indireta, que
seja) dos tropeços da esquerda em seus próprios cadarços, abre-se na Academia e
em jornais de menor expressão o debate sobre Voto
Obrigatório X Voto Facultativo.
No caso Trompete,
onde o voto é facultativo e a captura da opinião do ausente eventual se
transmuda em "maioria silenciosa", não é a obrigatoriedade do voto
que se debate, mas sim o modo de interpretá-lo no varejo. Um sistema
federalista puro, em que os estados declaram a prospecção do vencedor local em
detrimento de uma soma absoluta de votos do todo nacional, sem distinções
regionais, tem tônica mais forte do que propriamente a transformação de um
direito de escolha em dever cívico-funcional, o que seria, no caso em
discussão, um problema destes cantos do mundo.
Por lá, muito por
influência jeffersoniana, criou-se nos idos de 1788 um sistema que seria (ao
menos como se via naquele tempo pré-Texas e proto-iPhone) “à prova de oportunistas”.
É nesse sistema que o federalismo americano se expressa da forma mais plena e
acabada: a União não interfere na escola que cada estado fizer, nem tampouco
interferem os estados, entre si, em suas próprias escolhas: os mais justos até
que reclamam dos mais injustos, mas fora reclamar, nada lhes resta a fazer. Vai
quem quer (às urnas), chega quem pode mais (à Casa Branca), cada qual com o seu
regulamento embaixo do braço (esquerdo ou direito).
O caso Trompete
quebra essa máxima da blindagem política: foi justamente esse sistema casado à
não obrigatoriedade do voto que alçou à Casa Branca essa espécie de Homem de
Cabelos Laranja com espírito de Rei Norte Coreano Pré-Adolescente.
Enquanto por lá se
discute como evitar não apenas gente como Trombeta (ou Trompete, pois não quero
aqui confundir “Trump” com “Horn”), lembram-se também as alternativas que
estavam surgindo do outro lado dos insatisfeitos: um tal de Bernardo da Areia,
que a ventania da Trombeta acabou de dissipar de forma definitiva. Em outras
palavras, esse sistema federalista (hoje em dia bem para lá de tosco de forma
geral), como havia sido prenunciado em 2000 pela vitória mal explicada do Jorge
Andarilho Moita ia dar onde deu - pena que ninguém imaginava qual néscio da
altura do Sr. Trombeta que aproveitar-se-ia temerosamente dessa oportunidade.
Que seja, isso é o
que temos para hoje.
Por aqui,
percebe-se que o voto obrigatório seria nossa mazela (ou senzala).
Outrora atacado
pelo mesmo PT que passou a defendê-lo com unhas e dentes assim que chegou ao
poder e que agora, vendo seus apaniguados do Bolsa Família abrindo as portas de
palácios governamentais aos pastores pentecostais, o voto obrigatório ganha as
pedradas de todos aqueles que não são MDB.
Sim, ele, esse
malfeitor, o voto obrigatório, que já passou do tempo dos ataques enquanto
vemos até o facultativo sofrer fuzilamento em praça pública. Dizem por ai que
tem gente demais sem saber o que pensa tendo o direito de dizer o que acha
sobre algo que não faz a menor ideia de como funciona: e quando esse direito
passa a ser obrigatório ficamos com a seguinte fórmula – gente demais sem saber
o que pensa tendo o dever de dizer o que acha sobre algo que não faz a menor
ideia de como funciona.
O voto está sob
ataque neste início do século XXI com a ferramenta eferrujada da democracia,
antes que digam que ela, a democracia, a melhor das piores, é que tem lá sua
inoperabilidade perante as liberdades e as igualdades ou, até mesmo, a lógica.
Ideias de voto qualificado estão se espraiando pelo mundo em reação às estridências
da Trombeta Laranja. Quem ainda não viu, se informe sobre as ideias de Jason
Brennan nesta era da Sétima Trombeta do Apocalipse.
E atacar o voto
aqui abaixo da Amazônia equivale a derrubar essa muralha, outrora construída
por Olavo Bilac quando flanava fora de sua atividade como letrista de hinos
chacotados em grau máximo e autor de sonetos de gosto mais do que duvidoso.
Mas, convenhamos após análise – desse sistema bilaquiano de compulsoriedade do
voto que desaguou num cabresto oficializado pelo Estado que alcançou seu ápice
durante os tempos de Militares no Poder, o que resta, hoje, dessa obrigatoriedade,
edulcorada por uma alternativa de justificação de fundamentação pronta, que
equivale a uma abstenção consentida a
priori pela lei?
Veja-se nessas
eleições de 2016 - a ausência chegou perto dos 20% e vem de um continuum crescendo, seja ele por
problemas pontuais (recadastramento, como tentaram alguns inverter a causa em
descarada petição de princípio), seja por problemas de difícil compreensão
(abstenção pura e simples por opção do eleitor que se orgulha de
"justificar o voto desde 1989" e assim por diante).
Essa queda
vertiginosa nos índices de legitimidade são obviamente escondidas pelos detentores
do poder e manipuladas por jornalistas que atuam como seus procuradores, tal
qual os capitães do mal recadastratório.
Como dizer, então,
dadas tais margens crescentes causadas por um sistema de ampla facilidade para
"justificação de ausência", que uma pessoa está "obrigada a
votar"?
Mais – ainda que
não justifique, o que dizer de um sistema que, mesmo assim, permite que o eleitor
pague uma "multa" pela sua "violação da lei eleitoral que impõe
a obrigatoriedade do voto", se a tal multa ainda dá troco quando é paga (com
atraso até...) com uma nota de R$2,00 (dois reais)?
Convenhamos:
"voto obrigatório" no Brasil é um de nossos curiosos mitos urbanos
(e, por que não reconhecer, um de nossos mitos rurais também, ao lado do ET de
Varginha e do Chupa-Cabra).
No Brasil, só vai
votar quem não tem paciência para "justificar a ausência" ou não sabe
como "pagar a multa" ou, digamos assim, se importa algo com o dever
moral imposto por lei em face de sanções que não assustam nem o mais castiço
dentre os brasileiros.Os demais, nem sabem quando a papeleta do “votei para
prefeito em 2016” poderá ser exigida ou usada (talvez para tirar passaporte,
mas hoje ninguém na PF sequer olha se você votou ou não).
O sistema dá
brechas infinitas para não se votar.
Reformulando: o sistema permite que não se vote.
Proibições para compelir a prática de um ato, a semelhança do
nosso sistema de voto obrigatório em nossa lei eleitoral, equivalem, como diria
o velho Goffredão, a uma permissão.
Paremos com essa
balela de que o voto no Brasil é obrigatório.
Pois bem, se
vivemos num sistema de "voto facultativo de fato", justamente porque
a obrigatoriedade jurídica é, ultima
ratio, escorada numa multa de menos de R$2,00 (dois reais) e considerando
que o nosso sistema é absoluto sem qualquer traço de federalismo como ocorre
nos EUA, qual o problema por aqui?
O problema é que
não há problema algum com o sistema.
O problema por aqui é muito outro.
E isso até que surja por aqui uma versão local de Trombeta – e não
me refiro aqui a Bolsonaro, um insider da
política; penso em algo semelhante mas em versão local, algum empresário
"bem sucedido" e cheio de ideias malucas, algum Chatô em versão
moderna que misture um pouco de Berlusconi com Putin; um senhor de Engenho ou dono
de Cortiço do tipo Romão que veja na política um espaço a ser ocupado pela sua
vaidade, que não cabe mais nos Conselhos de Administração que frequenta nos “mercados
da vida”.
É só olhar em
volta que acharemos vários desses.
É só dar a ideia que em 2018 ele estará lá, pronto para ocupar o
Planalto e receber uma ligação do Trombeta parabenizando-o pela lição aprendida
e aplicada.
E quando ele se
candidatar e der "traço no Ibope", não vai ser o voto obrigatório de
direito ou o facultativo de fato que vai nos tirar da agonia de ver (mais um)
imbecil dirigindo o nosso país.
Tanto lá quanto
aqui, a proposta é: vamos acabar com o federalismo de uma vez antes que ele
acabe com cada um de nós.