segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Mesóclise

Caderno de Dúvidas Linguísticas
por Prof. Pinto Cançado

Eis-me aqui novamente, leitores! O Pinto incansável que jamais deixará uma trepidação linguística repousar.

Se a dúvida linguística aparece, o Pinto surge diante da língua e tira a dúvida e... volta à labuta, Cançado!

E a dúvida que tem pairado é: mesóclise.

O que é a mesóclise?

Para que serve?

Muito bem. A mesóclise é coisa, digamos, da sintaxe. A sintaxe vai trazer regras sobre onde é o lugar correto de se meter certas palavras.

Em algumas frases, onde temos pronomes entre os predicados, qual seja, outras pessoas que não o sujeito da ação como sofredoras dessa ação, há certas ocasiões em que essas pessoas predicativas entram de forma oblíqua na conversa.

Saber meter as coisas certas nos lugares certos no processo artístico de construir uma frase é exatamente o que diferencia um inábil de um expert.

Essa meteção, que os gramáticos chamam de colocação, especificamente no caso da mesóclise, colocação pronominal, demonstra não apenas maturidade, mas conhecimento, firmeza, segurança, clareza, enfim, experiência.

Saber usar a língua, de certa forma, não é apenas uma questão gramatical, de estilo ou de status: é uma questão de autoridade, pois visa transmitir, além da mensagem (conteúdo), sensação de segurança (forma).

Diante de energúmeno gramatical, nos sentimos inseguros, pois mais que ele se esforce em dizer algo que sabe, comumente não sabe como fazê-lo. E esse "como" de modo amplo tem mais importância do que "o que se pretende dizer", sobretudo nos tempos de Dr. Google.

Na forma também sabemos se o conteúdo faz sentido e é verdadeiro: quem sabe a forma correta de dizer as coisas, pode esconder por algum tempo que não sabe o que diz - por algum tempo. A forma há de desvendar o parlapatão, com o passar do tempo: deixe-o falar, a vontade e logo o conteúdo surgirá como o gás que sai ao girarmos a rosca da garrafa de refrigerante. E logo notaremos que se todo gás sair, o conteúdo fica intragável.

A mesóclise (voltando a ela) é talvez o ápice dessa arte da meteção das coisas certas nos lugares certos.

A mesóclise se dá quando você precisa meter o pronome literalmente no meio da ação, para, digamos, não agredir nossos orifícios, que o Mestre Napoleão (§841) assim dá destaque:

Repugna ao ouvido, nas formas do futuro do presente e nas do futuro do pretérito, a posposição dos oblíquos. A não ser que tenha os ouvidos inteiramente estragados, ninguém irá dizer farei-te, fará-nos, fará-vos, faríamos-lhe etc.

Veja que curioso e que sensacional: ele não disse "a não ser que tenha os ouvidos inteiramente estragados, não dizer-se-á farei-te"; ele fez questão de dizer que "ninguém irá dizer", muito apesar de termos ai uma ótima chance que o futuro do presente teve perdida pela presença do "não" (Napoleão é Napoleão!). Eu até diria que "ninguém estará a dizer", ou, para ser simpático, simplesmente "ninguém vai estar dizendo...".

Pois bem - esse notável professor tão preocupado com os nossos orifícios em matéria de colocação, com ênfase para duto auricular, ainda deu dicas preciosas para se ter a mesóclise num grau jamais tido:

Nessas formas podemos encontrar até dois oblíquos mesoclíticos: 'devolver-no-la-ão vocês?'.

Repito: devolver-no-la-ão vocês?

Eu, cá comigo, Pinto Cançado, acho que não: ficará tudo como está.

Quanto à mesóclise, partindo do pressuposto que é uma técnica de meteção de um ser, na forma de um pronome e que entra obliquamente na conversa, ali, bem no meio da ação, para não machucar as posições do sujeito que pratica a ação (ativa ou passivamente), temos que seu préstimo tem vistas a preservar a integridade dos orifícios, sobretudo dos ouvidos.

Se assim deixar de ser, devolver-no-la-á (traduzindo = a integridade ao ouvido), sem temer, jamais.